De García Lorca às perseguições da guerra civil

Noticiaram os órgãos de informação que no dia 18 de agosto de 1936 era assassinado (ao que parece fuzilado) num local perto da cidade de Granada, na Andaluzia, o poeta e dramaturgo Federico García Lorca (1898-1936), considerado um dos membros inspiradores da chamada “Generación del  27”, um dos celebrados movimentos literários (o professor e crítico literário Pablo Jauralde Pou considera que “tiene una dimensión universal”), e que associou figuras cimeiras da literatura espanhola, como Juan Ramón Jiménez (1881-1958, que recebeu o Nobel da Literatura em 1956), Luis Cernuda (1902-1963), Jorge Guillén (1893-1984), Vicente Aleixandre (1898-1984), Gerardo Diego (1896-1987), Dámaso Alonso (1898-1990) ou Rafael Alberti (1902-1999).

Por M. Correia Fernandes

A razão da designação de “generación”, por muitos discutida, terá tido adotada por ocasião de uma celebração em Sevilha do terceiro centenário de Luis de Góngora (1561-1627). Esta geração afirmou-se por contraponto à também celebrada “Generación del 98”, que associou nomes como Miguel de Unamuno, Ángel Ganivet, Ramón del Valle-Inclán, Jacinto Benavente, Pío Baroja, Azorín, Ramiro de Maeztu,  Antonio e Manuel  Machado e Francisco Villaespesa. É um conjunto de escritores, críticos e ensaístas marcados por uma espécie de “crise moral, política e social que em Espanha se seguiu à derrota militar que conduziu à perda das possessões do Ultramar no Golfo do México (Porto Rico e Cuba)  e na Pacífico (Filipinas). É um notável  conjunto de autores século  XX .

A “Generación del 27” projetou-se até o final do séc. XX, com nomes que se tornaram celebrados na cultura espanhola, de que importa referir o nome de Dámaso Alonso, notável como escritor e poeta, mas sobretudo como crítico e analista cultural, que foi Presidente prestigiado da Real Academia Española, instituição cimeira tanto da língua como da cultura da Espanha e do mundo de fala hispânica. Desempenhou o cargo do 1968 a 1982, tendo sido reeleito quatro vezes. Para além da poesia, notabilizou-se  em estudos sobre grandes nomes da literatura espanhola, com San Juan de la Cruz, Luis de Góngora e sua poética e Lope de Vega.

Por contraposição a Dámaso Alonso e aos ouros membros da “Generación”,  García Lorca morreu cedo, muito cedo, aos 38 anos. Os quadros do seu assassinato nunca foram completamente esclarecidos. Há quem aponte, para além das causas políticas em tempos de ascensão do franquismo, para causas nascidas da sua tendência homoerótica, para além do seu empenhamento em problemas sociais emergentes da cultura tradicional do ruralismo andaluz, e que procura retratar em obras teatrais como Rosita la soltera (1927), Bodas de Sangre (1933), Yerma (1934) e La Casa de Bernarda Alba (1936) que o afirmam como notável dramaturgo, construtor de universos simbólicos, que corporizou também na fundação e orientação do projeto teatral  La Barraca A  dimensão poética da sua obra emerge em poemas como o Romancero gitano, e  El poeta en Nueva York (1929-30, inspirados no contraste entre a presença que manteve na cidade americana e os quadros tradicionais da sua origem andaluza, ou Sonetos del Amor Oscuro  (1936), que sugere a relação textual com o conhecido poema de funda espiritualidade de S. João da Cruz Noche oscura. Segundo o seu companheiro de geração Vicente Aleixandre, “o seu coração era apaixonado como poucos e possuía uma grande  capacidade de amor e de sofrimento enobrecida pelo seu nobre pensamento.  E afirma: “Amó mucho, cualidad que algunos superficiales le negaron. Y sufrió por amor, lo que probablemente nadie supo”.

Vários destes sonetos constituem gestos de admiração por figuras enobrecidas da cultura andaluza, como os compositores Isaac Albéniz e Manuel de Falla, ao lado da conhecida memória plasmada no Llanto por Ignacio Sánchez Mejías, o toureiro colhido na praça de Sevilha  “A las cinco de la tarde”, em que lembra o “recuerdo una brisa triste por los olivos”.  Também a homenagem aos grandes compositores do seu tempo evidencia o reconhecido gosto pela música, bem como pela arte e especialmente a pintura, que sempre manifestou.  A poesía de García Lorca possui a dimensão indizível de uma espiritualidade humanista interpretada nos gestos do quotidiano e nos gestos de presença e afeto entre o poeta, a natureza, as coisas, o universo, como podemos sentir nesta passagem:

Haverá paz entre nós / como Cristo nos ensina?
Ou nunca será possível /a solução do problema?
E se o amor nos engana? / Quem a vida nos alenta
se o crepúsculo nos funde /na verdadeira ciência
do Bem que quiçá não exista,/ e do mal que palpita perto?
Se a esperança se apaga / e a Babel começa,

que tocha iluminará/ os caminhos da Terra? (Poema “Este é o prólogo”, trad. De William Agel de Melo).

Nos seus “Poema Ibéricos”, Miguel Torga dedica a Lorca (para além dos grandes mestre ibéricos do pensamento e da  literatura, como Camões, Cervantes, Herculano ou Picasso, ou São João da Cruz e Unamuno), um poema em que diz: ”Deixa um pobre poeta da montanha/ trazer torgas à rosa de Granada”.

O seu tempo

Lembrar o triste e digno de memória  assassinato de Lorca em 1936 convida a um pequeno percurso pelo Martirológio Romano, lembrando também o que aconteceu nesse ano de 1936, entre os meses de julho e setembro. Quase todos os dias surgem notas de assassinatos (parece que na maioria fusilamentos) de milhares  de sacerdotes, religiosos e cristãos ligados a ordens, paróquias e comunidades nos mais diversos municípios da geografia espanhola. De entre os que em Garnada exerciam a sua missão tanto religiosa como deassistência social contam-se os membros da comunidade dos Hospitalários da San Juan de Diós, que desde 1552 mantiveram o Hospício na rua do mesmo nome, que ao longo dos séculos se foi modernizando até à atualidade.

Nesse mesmo dia de 1936 (18 de agosto) o Martirológio Romano assinala a morte de 20 homens e mulheres cristãos, sacerdotes, religiosos e leigos executados em várias localidades de Espanha.  Jaime Nogueira Pinto assinala que durante e guerra civil (especfialmente nos meses de julho e agosto desse ano de 1936) “foram assassinados 13 bispos,  4184 sacerdotes seculares, 2365 religiosos e 283 religiosas, cifras enormes em termos absolutos e relativos”, e ao mesmo tempo foram fechadas igrejas e encerradas escolas e casas religiosas. (Art. na Enclopedia Verbo Séc XXI).

A continuidade da criação literária e artística desse  grupo manteve-se, após a tomada do poder pelo Genreal Franco e a afirmação do seu nacionalismo ditatorial. O valor da criação literária e da reflexão filosófica, da arte e do pensamento situam-se empre para além dos conflitos políticos e de ilusórias tomadas do poder. Por isso ali floresceram nos anos subsequentes grandes pensadores, como Ortega y Gasset (1883-1955), María Zambrano (1904-1991) ou Julián Marías (1914-2005).

Todas as revoluções vivem da violência. Neste dia em que escrevo, o Martirológio Romano assinala a subida ao cadafalso da Revolução Francesa, em 1792, de mais de uma centena de religiosos e cristãos leigos em Paris, alguns dos quais da  histórica e simbólica Abadia de Saint German des Près, no coração de Paris. E igualmente podemos recordar o Diálogo das Carmelitas, drama de Geoge Bernanos (1888-1948) que deu origem à ópera de François Poulenc (1899-1963), escrita em 1956, inspirados na morte no cadafalso de 16 religiosas carmelitas de Compiègne, em 17 de julho de 1794, acontecimento que impressionou vivamente as multidões do tempo. As tragédias humanas nascidas da violência sempre foram também fonte de criatividade e lamento de quem nelas medita como triste sinal da condição humana e propõe para a violência o contraponto da fé e da espiritualidade.