
«Pouco tempo após o falecimento do poeta a 9 de junho de 1999, as primeiras incursões ao espólio recolhido no mosteiro de Singeverga revelaram, entre outros papéis, um conjunto de catorze folhas (…)»: é deste conjunto que saiu o conjunto de textos inéditos apresentados no livro “Sétimo dia”, de Daniel Faria, recentemente publicado pela Assírio & Alvim.
«Cinco seres, cinco dias. No começo do mundo, Daniel Faria leva-nos no caminho enigmático dos primeiros homens. São breves fragmentos de um projeto que o poeta ainda revisitava nas vésperas da sua morte, um livro inédito de uma contenção exemplar e luminosa», explica a editora.
«Não sabemos, de facto, como tencionava Daniel Faria prosseguir este projeto ou sequer se terá encarado em algum momento concluí-lo; interrogamo-nos, caso tivesse continuado, que lugar ocuparia cada homem nos dois dias em falta», escreve Francisco Saraiva Fino no texto que abre o volume.
«A dado momento, na única entrevista que lhe conhecemos, comentava o poeta que a ideia de reconhecer Cristo como “lugar mal situado” deveria entender-se do ponto de vista da sua humanidade, a qual, também ela carente de um lugar inclusivamente onde “reclinar a cabeça”, acabou por se fazer lugar e servir de orientação e modelo para todos os homens», observa o membro das Comissões de Espólio e de Edição da obra de Daniel Faria.
«Em “Sétimo dia”, cinco homens repartem perspetivas sobre a ideia de ocupação e coincidem no desejo de alcançar uma certa ideia de existência transcendente sem depor a medida humana a partir da qual cada um se foi fazendo lugar. Cada homem permanece em redor da raiz da sua condição, mesmo quando na enunciação das dúvidas, dores e amarguras se faz pressentir o rumor da mudança aguardada. Cada voz é também o anunciar de um degrau no caminho do reencontro com a palavra poética na expressão da “fé inabalável no mistério que inclina / Os homens para dentro” e na representação das depurações da semente na difícil ascensão para a vida do espírito.»
«Neste livro, «escutar cada voz, escutar cada verso, é intuir a majestade subtil e ágil da condição divina e humana do corpo desse canto ao longo do enigma dos dias. Cada um destes homens, cada uma destas vozes e cada um destes cantos, não lhes toquemos senão com os materiais secretos / Do amor», conclui Francisco Saraiva Fino.
Sete excertos de “Sétimo dia” de Daniel Faria
«A minha maneira de curar-me é perdoar as ofensas.
Sei que começo a despropósito, mas não sei como dizer-te o que me trouxe aqui. Tenho de dizê-lo agora, mais tarde seria uma doença. Ter-te diante de mim e adiar a confissão de que vim para te ver.»
«Podes construir a vida toda e chegar ao fim sem teres abrigo. Podes dar ao mundo os filhos, a força, a fartura, sem alcançares outra recompensa senão essa: a de teres dado. E certamente não há outra maior. Podes estar à mesa a comer sozinho e ao vir-te à memória o número dos teus filhos e dos teus netos tudo de repente perde sentido. Pensa, então, não que a vida te abandona, mas que te leva.
A viuvez e o luto são mais do que o sofrimento. A tarefa da vida é o deserto de te gastares. Ganhaste transparência. Aproximas o que divides e separas. E chamam-te a libertar.»
«Agora, quando telefonar de novo, vou deixar no atendedor de chamadas uma passagem bíblica. Há aqui uma de que gosto por demais: “Ao descer da montanha, seguiam-no multidões numerosas, quando um leproso de repente se aproximou e se prostrou diante dele dizendo: ‘Senhor, se queres, tens poder para purificar-me’. Ele estendeu a mão e, tocando-o, disse: ‘Eu quero, sê purificado’ E imediatamente ele ficou curado.” E Jesus disse, “Eu quero”… eu nunca ouvi nada com mais luz. Eu nem consigo imaginar, sem que me aumente a febre, esse homem a correr por entre a multidão, esse homem a dizer se queres e Jesus a dizer eu quero… Eu quero… eu quero… eu nunca tinha dito nada assim.»
«Penso na decisão de ser o último. Na decisão de baixar, como a febre, às bermas dos outros quando dormem no desvão. Na decisão de nunca mais adoecer sozinho.
Quero estar ao lado dos que não têm amparo, ser eu a perguntar-lhes, estás melhor?»
«Bato à porta do teu quarto mesmo quando sei que não estás. Descobri agora quanto custa aos mendigos, não digo a fome, mas não haver ninguém.»
«Sinto a terra tremer. Tu estás tão quieta a enfiar a linha nas agulhas. A passagem é tão estreita. A salvação. Eu quero emagrecer. Eu quero perder tudo.»
«Mãe, estou aqui.
É como se caminhasse sobre as águas. É como se ouvisse um caminho a chamar-me do fundo.
Do fundo.
Como se a morte me desse uma direção.»
(inf: Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura)