“Traditionis custodes” – A Unidade no Rito Romano (2)

  1. As magnânimas concessões de Summorum Pontificum (agravadas pela interpretação da Comissão Pontifícia Ecclesia Dei, na sua instrução de 30 de abril de 2011), ao enfatizar a autonomia de cada sacerdote na escolha da forma do rito com que celebrar, comprometeram seriamente a autoridade dos bispos como reguladores da Liturgia nas suas dioceses, a ponto de mortificar a unidade da Igreja em oração. Essa é, em síntese, a resposta dos Bispos de todo o mundo ao inquérito feito pela Congregação da Doutrina da Fé em março de 2020. O cancro do relativismo penetrara no coração da vida da Igreja que é a sagrada Liturgia. Aparentemente, esta passara a ser uma questão de gosto pessoal, prevalecendo as sensibilidades individuais ou de grupo sobre a comunhão eclesial. A Eucaristia que deveria unir, dividia. Favorecia-se a formação de uma Igreja paralela em comunidades praticamente isentas da jurisdição episcopal.
  2. Na carta aos bispos que acompanha o “Motu proprio” Traditionis custodes, Francisco explica a situação gerada: «a intenção pastoral dos meus Predecessores… foi muitas vezes gravemente desatendida. Uma possibilidade oferecida por São João Paulo II e, com magnanimidade ainda maior, por Bento XVI a fim de recompor a unidade do corpo eclesial no respeito para com as várias sensibilidades litúrgicas, foi aproveitada para aumentar as distâncias, endurecer as diferenças, construir contraposições que ferem a Igreja e travam o seu caminho, expondo-a ao risco de divisões».
  3. Francisco deplora todos os abusos em matéria litúrgica. E há-os, de sinal contrário. Esta sua intervenção tem como objetivo pôr termo «a um uso instrumental do Missale Romanum de 1962, cada vez mais caracterizado por uma recusa crescente não só da reforma litúrgica mas do II Concílio do Vaticano, com a afirmação infundada e insustentável de que tenha traído a Tradição e a “verdadeira Igreja”». Por outras palavras: não é uma mera questão litúrgica que o aflige, mas sim uma questão de eclesiologia e, mas radicalmente, de Tradição (com T maiúsculo). Aliás, isso não surpreende porque a Liturgia é canal principal da Tradição eclesial. Já Pio XI afirmava que é o «principal órgão do Magistério ordinário da Igreja».
  4. O Papa intervém para defender o II Concílio do Vaticano como momento referencial da Tradição da Igreja, guiada pelo Espírito. Foi a Igreja, em Concílio ecuménico, que quis a reforma litúrgica para assegurar aos fiéis uma participação mais consciente, piedosa e ativa nos ritos e nas preces da Liturgia, de forma a terem acesso ao mistério celebrado. Essas determinações concretizaram-se nos novos livros litúrgicos promulgados por São Paulo VI e São João Paulo II. «É cada vez mais evidente, nas palavras e atitudes de muitos, a estrita relação entre a escolha de celebrações segundo os livros litúrgicos anteriores ao II Concílio do Vaticano e a recusa da Igreja e das suas instituições em nome daquela que eles julgam a “verdadeira Igreja”. Trata-se de um comportamento que contradiz a comunhão» e alimenta o impulso à divisão. Releia-se, a este propósito, a catequese da Audiência Geral do passado dia 23 de junho de 2021.
  5. Segue-se a «firme decisão» de Francisco com o objetivo, comum aos seus antecessores, de «prosseguir, mais ainda, na procura constante da comunhão eclesial»: «revogar todas as normas, instruções, concessões e costumes anteriores ao presente Motu Proprio, e reter os livros litúrgicos promulgados pelos santos Pontífices Paulo VI e João Paulo II, em conformidade com os decretos de II Concílio do Vaticano, como a única expressão da lex orandi do Rito Romano».
  6. Aos Bispos, «guardiões da Tradição», incumbe regular a Liturgia nas suas Dioceses. E passa a ser sua competência exclusiva, seguindo as orientações da Sé Apostólica, autorizar na respetiva Diocese a celebração com os livros litúrgicos anteriores a 1970. Perante a existência de grupos organizados afetos às formas litúrgicas pré-conciliares, o Bispo deverá certificar-se de que «tais grupos não excluam a validade e a legitimidade da reforma litúrgica, das determinações do II Concílio do Vaticano e do Magistério dos Sumos Pontífices». Nessa condição pode permitir-lhes manter essa forma de celebração em lugar – nunca em Igrejas paroquiais – e dias por si determinados, nomeando um sacerdote idóneo para o cuidado pastoral destas comunidades (e não apenas para as suas celebrações). Não será autorizada a criação de novos grupos. Por sua parte, os sacerdotes terão de requerer ao Bispo a faculdade para celebrar com o uso dos livros litúrgicos anteriores a 1970; aos padres ordenados a partir de agora, tal licença não será concedida sem prévia consulta à Santa Sé.