
No passado dia 16 de julho de 2021, memória litúrgica de Nossa Senhora do Carmo, o Papa Francisco emanou um decreto de iniciativa pessoal (motu próprio), com o objetivo de promover a unidade e comunhão na Igreja, sobre o uso Missal anterior à reforma litúrgica.
Por Secretariado Diocesano da Liturgia
O documento ficará conhecido pelas primeiras palavras do texto latino: Traditionis custodes – Guardas (ou guardiões) da Tradição. Em concreto, os guardas da Tradição são os Bispos a quem é restituída plena autoridade para regular a celebração da liturgia nas Igrejas particulares de sua jurisdição.
O alcance e sentido da intervenção do Sumo Pontífice compreende-se à luz da história:
- O II Concílio ecuménico do Vaticano decretou, de forma praticamente consensual (2147 votos a favor e 4 contra, em 2151 votantes), a realização de uma reforma litúrgica geral. Leia-se a constituição conciliar sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, promulgada em 4 de dezembro de 1963 – é o primeiro documento do Concílio –, onde se expõem os critérios orientadores da reforma preconizada em que se desejava conciliar fidelidade à Tradição com o legítimo progresso, promover a participação consciente, piedosa e ativa do povo de Deus nas ações litúrgicas, proporcionar uma leitura mais abundante, variada e adaptada da Palavra de Deus nas celebrações, abrir caminho a convenientes e/ou necessárias acomodações e adaptações nos ritos e nas preces. Coube a São Paulo VI e São João Paulo II a condução e promulgação dessa ampla reforma litúrgica que tem como marco cimeiro a publicação do novo Missal Romano (1ª ed. típica em 1970; atualmente está em vigor a 3ª ed. típica emendada, de 2008).
- No período de realização e primeira aplicação da reforma, assiste-se a um movimento minoritário mas muito ativo e até agressivo de rejeição e aberta oposição ao Concílio, no seu conjunto. O leader mais conhecido desse movimento foi Marcel Lefebvre. Porque a mais notória aplicação das decisões do Concílio era a reforma do Missal, essa reação anti-Vaticano II transformou-se – por acréscimo – em movimento de rejeição do novo Missal ao qual se moveram críticas sem fundamento, como se esclarece no Proémio da IGMR (hoje, nn. 1-15).
- Desejando, em vão, evitar o cisma ou remediá-lo, João Paulo II adotou uma política generosa de indultos: em carta do Prefeito da Congregação para o Culto Divino aos Presidentes das Conferências Episcopais, de 3 de outubro de 1984, (CCD, “Quattuor abhinc annos”: EDREL 3538-3539) dá-se faculdade aos Bispos de conceder indultos, que permitam celebrar a Eucaristia com o Missal tridentino, na sua última edição de 1962, a sacerdotes e fiéis afeiçoados às formas litúrgicas pré-conciliares. Condição: que não ponham em dúvida a legitimidade e correção doutrinal do Missal de Paulo VI. Cada Bispo determinaria os lugares (não em Igrejas paroquiais), tempos e modos em que se poderiam celebrar essas missas. Por fim, recomendava-se que tal concessão não causasse qualquer prejuízo à fiel observância da reforma litúrgica na vida das comunidades eclesiais. Volvidos 4 anos, São João Paulo II foi ainda mais generoso nestas concessões (Carta Ap. Motu proprio Ecclesia Dei, 2 de julho de 1988), sempre movido pelo desejo da reconciliação e para conter ou reverter o movimento cismático que se desenhava. Infelizmente, os resultados esperados não se confirmaram e, pelo contrário, começou a assistir-se, dentro da Igreja, a um uso paralelo do Missal Romano anterior e posterior à reforma litúrgica.
- Bento XVI, movido pelo mesmo desejo de reconciliação e comunhão na Igreja, interveio de novo nesta matéria com o seu Motu proprio Summorum Pontificum de 7 de julho de 2007. Bento XVI considera que «o Missal promulgado por Paulo VI é a expressão ordinária da lex orandi da Igreja católica de rito latino». Não obstante, «o Missal promulgado por São Pio V e de novo editado pelo Beato João XXIII deve considerar-se como expressão extraordinária da mesma lex orandi». Consequência: o alargamento das possibilidades do seu uso ficando o controlo dessa prática à margem da autoridade dos Bispos, uma vez que os adeptos dessa forma celebrativa a podiam celebrar por livre iniciativa… E podiam sempre recorrer à Comissão Pontifícia Ecclesia Dei no caso dos ordinários do lugar criarem obstáculos aos seus intentos. Bento XVI declarava-se persuadido de que os beneficiários da sua concessão não contestavam as decisões essenciais do II Concílio do Vaticano, entre as quais se contava a reforma litúrgica, mas antes «aceitavam claramente o carácter vinculante do II Concílio do Vaticano e eram fiéis ao Papa e aos Bispos». Advertido dos riscos de divisão que se adivinhavam – nas paróquias, nos seminários… –, Bento XVI augurava uma convivência pacífica e fecunda das duas formas do Rito Romano e prometeu que, no caso de tais ameaças se concretizarem, se poderiam encontrar vias para encontrar remédio ao problema. (A continuar)