
Foi apresentada, primeiro na igreja da Lapa, no Porto e depois na igreja de Nossa Senhora da Maia, uma nova versão do canto evangélico do Magnificat, composta pelo Cónego António Ferreira dos Santos, tendo sido a sua apresentação neste local integrada, em 10 de junho, nas festas de Nossa Senhora do Bom Despacho daquela cidade, cuja Comissão teve o apoio do Município da Maia e contando com a presença do Presidente da Câmara e do Presidente da Junta de freguesia.
Por M. Correia Fernandes
Canto de louvor e ação de graças pronunciado por Maria após a visita a Isabel, o Magnificat é uma das passagens bíblicas que mais inspirou os maiores e mais conhecidos e celebrados compositores dos tempos cristãos, a começar pelo canto gregoriano, com várias melodias tradicionais que o têm por tema, passando pela sublime versão de J. S. Bach (1685-1750), mas também a de seu filho Carl Phillip Emanuel Bach (1714-1788), (a qual o pai terá ouvido antes da sua morte), mas também de Antonio Vivaldi (1678-1741), D. Buxtheude (1637-1707), César Frank (1822-1890) e tantos outros, de que sobressaem os modernos Arvo Pärt (em 1990) e John Rutter (em 1989).
António Ferreira dos Santos (n.1936), com tantas composições litúrgicas inspiradas por este tema, escreveu agora uma versão para coro, soprano solista, órgão e orquestra, na versão em língua portuguesa, que foi interpretado pela soprano Maria João Matos, pelo Coro Polifónico da Lapa, com a orquestra “Sine Nomine”, o organista Tiago Ferreira, sob a direção de Filipe Veríssimo.
A obra apresenta o texto em seis partes, a que o autor acrescentou o final do Hino “Veni Creator Spiritus” – “Deo Patri sit gloria” (seja dada Glória a Deus Pai) cantado pelo coro de vozes masculinas, e o Glória final, proposto pela soprano e concluído pelo coro e com uma repetição do Magnificat e uma sonoroso “Amen” realçado pela intervenção do órgão. Trata-se pois de uma visão pessoal do cântico, a que se associa a invocação do Espírito Santo e a doxologia salmódica do Glória.
A expressão orquestral é realçada pelo brilho festivo da trompete valorizando a harmonia das cordas, sublinhando as vozes do coro, e fazendo sobressair palavras-chave como “todas as gerações”, em que a expressão em uníssono acentua a universalidade do canto. São palavras especialmente sublinhadas: “todas as gerações”, “em mim maravilhas”, “Santo é o Seu Nome”. Ao brilho da trompete é contraposta a presença constante de uma espécie de “baixo contínuo”, em que o violoncelo se torna protagonista, apoiando as melodias, como que uma presença do povo que canta, da comunidade estimulada pela palavra e pelo sentido do louvor. Uma intervenção orquestral, uma espécie de fuga em “adagio” proposta pelos violoncelos introduz o “alegro” do “manifestou o poder do seu braço” e o “dispersou os soberbos”, apresentado em tom festivo. O “acolheu Israel seu servo” é precedido de um andante suave e depois de um “moderato” e majestoso que introduz o “acolheu Israel seu servo” e um solo que lembra a “Sua misericórdia”, depois festivamente exposta no “como tinha prometido a nossos pais”.
O coro final do Glória, no qual o coro sublinha o “agora e sempre”, conduz ao Amen final com o conjunto do coro, orquestra e órgão exprimem este sentido de prece e entusiasmo coletivo, que sugere de novo o Magnificat final proposto pelo solo.
Trata-se portanto de uma fórmula de construção pessoal, que tenta transmitir em linguagem musical moderna, inspirada pelas grandes linhas clássicas, por um lado o sentido íntimo da prece, por outro o do louvor humanamente reconhecido e por outro ainda a infusão do entusiasmo e da esperança que o cântico propõe à humanidade. Na obra encontramos também as linhas construtoras do autor, o seu estilo que alia o grandiloquente ao intimista, as expressões solenes e brilhantes dos metais e uma espécie de nostalgia pelo órgão, que assume também aqui a sua presença expressiva. A obra musical de Ferreira dos Santos tem os seus admiradores e os seus detractores: tudo isso é normal no ajuizar dos homens. Mas é certamente uma obra a redescobrir e apreciar.
Uma palavra sobre as duas outras componentes do concerto: o prelúdio e depois a fuga em mi bemol maior de J. S. Bach, numa brilhante versão de Tiago Ferreira ao órgão, e o concerto de G. F. Haendel para órgão e orquestra, designado “o cuco e o rouxinol”, pela harmonia imitativa do texto musical, em brilhante interpretação da orquestra e com belo entrosamento entre esta e o organista, valorizada pela equilibrada direção de Filipe Veríssimo. Foi uma demonstração da capacidade e qualidade da presença da boa música para além das salas oficiais, muitas vezes desvalorizada.
No final ainda, o maestro levou toda a assembleia, distanciada apesar de numerosa, a cantar o “Hino a Nossa Senhora do Bom Despacho”. “Sabe-se que o culto a Nossa Senhora do Bom Despacho é muito antigo, existindo um documento que prova que pelo menos cerca de 1680 ele era já bastante activo em S. Miguel de Barreiros”, como afirma José Augusto Maia Marques.
A devoção está expressa no hino que os presentes acabaram por entoar com a participação da orquestra e órgão.