Tratar os negócios com diligência

Caiu-me inopinadamente em mãos um capítulo da Introdução à Vida Devota, de S. Francisco de Sales intitulado “É preciso tratar os negócios com diligência, mas sem afã nem ansiedade”.

Por M. Correia Fernandes

Pensei o óbvio: é um escrito do início do séc. XVII, nascido de uma espiritualidade cristã muito vivenciada, em período de “Contra-Reforma”, deve ser conselho do passado, para mais integrado na “Vida Devota”. De repente dei comigo a pensar quão oportuno este conselho pode ser para os nossos dias, na linguagem política, na linguagem empresarial, na linguagem mediática, e mesmo nos projetos eclesiais. Tentei confrontar com a profusão de mensagens que nos inundam, e que abundam entre outras coisas mais óbvias, como o interesse económico, a influência social, a captação de adesões irracionais, a busca de seguidores inopinadamente rápidos, numa linguagem frenética, cheia de mensagens subliminares, carentes de clareza e de sentido construtivo.

Como é possível que um bispo seiscentista tivesse dado orientações como esta às pessoas “devotas” do seu tempo e que tão bem serviriam às pessoas laicas ou laicistas e influentes do nosso?

A primeira coisa notável é a recomendação que faz: o cuidado e a diligência são próprias da caridade, enquanto “a solicitude, a canseira e o afã seriam contrários à felicidade”; o cuidado e a diligência associam-se à tranquilidade e à paz de espírito, ao contrário da ansiedade, que apenas a perturba.

A definição que propõe para o conceito de “afã” é o de “inquietação, sofreguidão e ardor”, e a chamada de atenção para que “toda a espécie de azáfama perturba a razão e o juízo, e até nos impede de fazer bem aquilo mesmo por que estamos afadigados e cheios de cuidado”.

Pesquisei o sentido de “afã”, e encontrei sinónimos como pressa e ânsia, sofreguidão, ansiedade. No original encontramos os termos “empressement” (traduzido por afã) e “souci” (traduzido por ansiedade). São conceitos de próximo sentido e que traduzem formas de pensar e agir que enformam as mentes e as ações de quem pretende exercer influência e arrastamento social.

Também encontramos bons conselhos sobre as formas de falar, recomendando que seja a linguagem “doce, franca, sincera, sem reticências, ingénua e fiel”, e sem refolhos (traduz duplicités), artifícios e fingimentos (traduz feintises). E faz também esta recomendação: “Embora nem sempre seja bom dizer toda a sorte de verdades, contudo nunca é permitido contraditar a verdade”. Nos nossos dias dizem-se e propalam-se toda a espécie de mentiras com a suposição de rápidas verdades.

A linguagem que nos inunda manifesta todo este universo de defeitos ou males e raramente nos favorece com as referidas qualidades. Encontramos muita mentira, oportunismo e maledicência; à clareza da verdade vemos contrapor o obscurantismo das palavras dúbias e dos conceitos encobridores. Basta ter seguido algumas das audições parlamentares a responsáveis por tanta atitude socialmente duvidosa e clandestinamente oportunista.

A linguagem dos nossos meios de comunicação tem vindo a tornar-se excessivamente corriqueira, superficial, aldrabada e pouco ponderada: a sua compulsiva rapidez é inimiga da clareza e do rigor da comunicação. Não se escutam as opiniões, interrompem-se juízos com perguntas impertinentes, não destinadas a esclarecer, mas a polemizar.

É claro que não vamos sugerir aos nossos oradores políticos ou comunicadores que leiam as propostas da “vida devota”: poderiam sentir-se muito limitados na sua ambição universalista. Mas as pequenas sugestões tão humanizadas que a vida devota sugere certamente os poderiam tornar melhores comunicadores, com menos riso e maior simplicidade. E sobretudo poderiam promover uma linguagem de diálogo franco em lugar de afã acusatório que encontramos nos discursos políticos.

Lembre-se então: “É preciso tratar os negócios com diligência, mas sem afã nem ansiedade”. Os negócios e as palavras.