
Andrée Crabée Rocha (1917-2003), que foi professora das Universidades de Lisboa e Coimbra, esposa do escritor Miguel Torga, publicou no seu livro “A Epistolografia em Portugal” (editado pela Almedina em Coimbra, em 1965 e reeditado pela Imprensa Nacional em 1985), e que Vasco Graça Moura considerou “um dos marcos decisivos da nossa história da literatura”, e “um dos momentos mais altos da epistolografia portuguesa” (DN,16 de abril de 2014, onde faz ressaltar sobretudo a correspondência entre Mécia e Jorge de Sena), uma carta dirigida por Fernando Pessoa a Miguel Torga, datada de 6 de junho de 1930, nestes termos:
Meu prezado camarada:
Muito agradeço o exemplar do seu livro ‘Rampa’. Recebi-o já há alguns dias. Só hoje posso escrever para lho agradecer. Li-o, porém, logo que o recebi.
Li-o e gostei dele. A sua sensibilidade é de tipo igual à do José Régio – é confundida em si mesma, com a inteligência. O que em si é ainda por aperfeiçoar é o modo de fazer uso dessa sensibilidade. Há que separar mais os dois elementos que naturalmente a compõem; ou que confundi-los ainda mais. Uma análise instintiva que coloque a sensibilidade desintelectualizada perante a inteligência dessensibilizada, em contraste, diálogo e reparo; ou uma síntese em que desapareçam os traços de haver dois.
Não creio impossível que qualquer, ou ambos, destes processos sejam por si atingidos num futuro próximo da sua consciência de si mesmo.
Intelectualmente – e portanto artisticamente – falando (a arte não é mais que uma manifestação distraída da inteligência), a sensibilidade é o inimigo. Não o inimigo que se nos opõe, como na guerra, mas o inimigo a quem nos opomos, como no amor. Há que vencer, pois, não por esmagamento, senão por sedução ou domínio. Chamar a sensibilidade para dentro da casa da inteligência; ou fazer a inteligência montar casa externa à sensibilidade. Imagens? Como o universo…
Mas em suma, gostei do seu livro, e por ele o felicito.
Com a melhor camaradagem e apreço,
Fernando Pessoa

Em 6 de junho de 1930 Fernando Pessoa estava a uma semana de fazer 42 anos (em 13 de junho).Neste 13 de junho de 2021 cumpriram-se 133 anos de seu nascimento, em Lisboa (1888-1935).
Miguel Torga (1907-1995) estava a dois meses de completar 23 anos (a 12 de agosto). Rampa (1930) era o seu segundo livro de poesia, publicado ainda com o seu nome de Adolpho Rocha. O primeiro chamava-se Ansiedade, e depois ainda publicou com o mesmo nome Tributo (1931), Pão Ázimo (contos, 1931) e Abismo (1932). O primeiro título com o nome Miguel Torga terá sido O outro Livro de Job (1936).
Sobre Miguel Torga não vale a pena abundar em mais biografia nem bibliografia, tão conhecida é a sua obra, tão pessoal e multifacetada. Foi o primeiro escritor de língua portuguesa a receber o Prémio Camões (em 1989), logo que ele foi instituído oficialmente, em 22 de junho de 1988, na sequência do Protocolo Adicional ao Acordo Cultural entre o Governo da República Portuguesa e o Governo da República Federativa do Brasil, de 7 de Setembro de 1966, aprovado por Portugal através do Decreto n.º 43/88, de 30 de Novembro, e que passou a distinguir anualmente o conjunto da obra de um escritor de língua portuguesa.
A divulgação desta carta recordou-me a pessoa de um amigo, que me sucedeu na Universidade de Granada como leitor de Português, e que foi também amigo pessoal e estudioso da obra de Miguel Torga, e que sucumbiu a um enfarte fatal quando lecionava Língua e Cultura portuguesa na Universidade de Seul, na Coreia do Sul e é autor de vários estudos sobre Torga, com quem conviveu e que a este se refere em passagens do seu Diário e sobre quem escreveu as seguintes obras: Sete meditações sobre Miguel Torga (1976), De Fernão Lopes a Miguel Torga (1985), Ser e Ler Torga (1987) e a obra postumamente publicada Ser Torga (1992). Guardo dele uma amável e excessiva dedicatória, datada de Granada,1985 que tenho algum escrúpulo em divulgar…
Da sua obra como poeta encontra-se uma Antologia, editada também postumamente em Viana do Castelo (1992), bem como a retoma da atenção em Ser e Ler Miguel Torga, no Porto, 1998), por trabalhos de Manuela Gonçalves.

A carta de Fernando Pessoa
São interessantes nesta carta de Torga alguns aspectos, além da denominação do destinatário como “camarada”, e “com camaradagem” a mútua relação, apenas por ser companheiro de escrita e fora de qualquer espúria referência política:
1.A preocupação de um novo autor, que ainda não assumira o nome de Miguel Torga, se manifestar junto daquele que era já considerado um mestre e modelo;
2.A recepção afável de Pessoa sobre o livro (“gostei dele”), conjugada depois com a abordagem ao seu gosto nessa distinção ente a sensibilidade e a inteligência, uma das grandes inquietações da poesia pessoana (ao afirmar por exemplo “Tudo o que penso sinto” ou “o que mim sente está pensando”, expressa na significativa frase “chamar a sensibilidade para dentro da casa da inteligência”, postulando assim uma síntese entre uma e outra coisa). É significativa a menção de que as imagens estejam na poesia como no universo. Certamente em muitas circunstâncias da sua criação poética se terá lembrado Torga desta associação, como qualquer criador de poesia. Lembro o poema pascal de Torga que começa “Com flores de rododendro cor de fogo / Anuncio aos sentidos / O milagre / Da ressurreição”. Cá está uma imagem na poesia presente no universo e no mistério, “não por esmagamento, senão por sedução e domínio”.
3.Interessante é a associação com José Régio (1901-1969), que tem como Torga uma presença Coimbrã, pela sua ação na revista Presença (1927), nesta associação entre a sensibilidade e a inteligência. Cada um deles seguiu depois o seu caminho, mas ambos foram figuras cimeiras na escrita em Portugal no século XX. Aliás, é significativo que tenha sido a Presença, ainda sob a inspiração de José Régio, que realizou a mais notável memória da morte de Fernando Pessoa, em 1935: ele estava presente na mente dos criadores.
4.A afirmação do “apreço” que Pessoa manifesta por um escritor ainda desconhecido, mas que se iria afirmar também como figura relevante.
Todo este universo me fez repensar (há que revisitar algumas coisas!) o que deixei escrito, quer neste semanário, por ocasião dos últimos dias de Torga (1994-1997), quer depois na sua publicação em Pós-leituras – Temas de Literatura Portuguesa e Comparada (Porto, Ed. ASA, 1999), com o título “Três reflexões sobre Miguel Torga”: “A propósito do Diário XVI” (o último por ele deixado), “Miguel Torga: in memoriam” e “Uma Páscoa de Torga”. Lembro também o escrito “nos 25 anos da sua morte, em 6 de fevereiro de 2020” (pode ver-se no Google…)
À distância de vinte e dois anos, é curioso recordar o que então escrevia: “Sabemos que qualquer escritor fala de si, mesmo quando afirma falar do mundo, dos outros homens e dos mistérios da vida… e quando escreve torna-se, transfigurado, no demiurgo do universo inteiro”. (Pós Leituras, pág. 138).