Afurada: inauguração da igreja restaurada

Diz-nos Sophia de Mello Andresen que uma igreja é «casa feita de matéria para a habitação do espírito» porque é nela que «os homens se reúnem em nome do eterno». É esta a sensação que invade quem entra na igreja renovada de Afurada. A sua inauguração aconteceu na tarde do passado domingo, 4 de julho, e gerou uma especial animação não só em toda a sua área envolvente, mas também nos arruamentos circundantes. O clima festivo começou a ser pontuado pela atuação performativa do rancho folclórico dos pescadores, ainda antes da entrada dos participantes para o seu interior.

A solene inauguração do restauro deste espaço religioso contou com a presença de D. Manuel Linda, bispo do Porto, e do Presidente da Câmara Municipal de Gaia, Eduardo Vítor Rodrigues, bem como das demais autoridades administrativas do Concelho, a que se juntaram vários membros do clero e de responsáveis pela execução das obras. Dadas as restrições sanitárias conhecidas, no espaço limitado do templo estava uma representação do povo de Deus, mas a integral participação neste ato foi assegurada a toda a população através de uma eficiente transmissão para painéis exteriores.

Bênção do novo ambão

Depois da leitura e da assinatura da ata evocativa deste evento, várias intervenções ajudaram os presentes a perceber o alcance e o significado das obras realizadas. Foi particularmente ilustrativa a comunicação do arquiteto Octávio Alves, responsável pela conceção dos trabalhos de renovação que também enriqueceu aquele espaço com a produção de obras de arte, colocadas no batistério e no frontão do altar. Mostrou, por exemplo, como a construção de uma antecâmera à entrada da igreja se tornou propiciadora de um ambiente de interiorização. Do mesmo modo, fez ver que o rasgar de janelas permite alargar o olhar para o vasto horizonte envolvente, assim entrelaçando o interior com o exterior do templo, o que proporciona uma fecunda conexão entre o recolhimento e o palpitar da vida quotidiana. Mereceu-lhe igualmente destaque a beleza dos vitrais, que sugerem as linhas harmoniosas dos estendais de roupa que amolduram o bairro, uma obra de arte graciosamente concebida e executada pelo Senhor Joaquim Andrade, membro da Comissão Fabriqueira e grande colaborador do pároco, padre Almiro Mendes, em todo o empreendimento das obras. Explicou também como foi dado um sentido de elevação ao peso compacto do bloco granítico do altar, ao ser ligeiramente levantado do chão e ao ficar enriquecido com a colocação de uma rede metálica e de peixes estilizados.

O elemento decorativo desta rede foi motivo inspirador para a intervenção do Presidente da Câmara de Gaia, a qual constituiu uma homenagem às mulheres que diariamente se dedicam ao conserto das redes de pesca, assim colaborando com aqueles bravos homens que «com garra e entusiasmo partem para o mar, a fim de garantir o peixe nas nossas mesas». Viu neste labor ligado à pesca uma inspiração e um estímulo ao desenvolvimento de redes que devem ser implementadas pelos distintos agentes sociais, para que no dia-a-dia se agreguem esforços «na missão de crença e de humanismo que nos une a todos».

Antes de proceder à bênção da cátedra da presidência e do ambão, D. Manuel Linda lembrou que uma igreja é sempre um centro de emoções, «onde se geram sentimentos intensíssimos» porque aí se chora, se sonha, se pede e se agradece. Elogiou a «inovação extraordinária» do friso de janelas, lembrando que uma igreja é centro que se torna casa de todo o povo, e valorizou tanto a simbologia deste espaço aberto para o mundo como a alusão aos estendais, sugerida nas linhas e cores dos vitrais. Também sublinhou que a decoração do altar com uma rede e peixes se reveste de um outro forte simbolismo, já que o peixe foi a primeira representação icónica de Cristo, quando as primitivas comunidades perseguidas não podiam usar a cruz como sinal distintivo da sua identidade cristã.

Andor de S Pedro

Realizada a bênção da cátedra da presidência celebrativa e do ambão, seguida de uma solene proclamação da Palavra, e depois de uma abundante aspersão de todo o espaço da igreja, houve um pequeno concerto de bateria, executada por um sobrinho e afilhado do padre Almiro. Assim terminou este momento, no fim do qual os presentes se dirigiram para o exterior, juntando-se ao cortejo que solenemente acompanhou o andor de S. Pedro até um amplo espaço junto ao rio, onde decorreu a missa campal.

A preceder o início da solene Eucaristia de Ação de Graças, presidida por D. Manuel Linda, um pequeno vídeo mostrou aos presentes o contraste entre o estado da igreja renovada e aquele em que ela se encontrava antes do seu restauro. As imagens do vídeo possibilitaram ao padre Almiro a ocasião para agradecer ao Sr. Presidente da Câmara Municipal, que quis revestir a igreja paroquial de dignidade com a doação de 120 mil euros, ao Sr. Presidente da Junta de Freguesia, que assumiu o restauro da torre, e à população de Afurada, que se mostrou tão generosa, em tempos de tantas dificuldades. Dirigindo-se depois a S. Pedro, pediu-lhe que ele continue a ser porta e ponte para o mistério, esperando que a Igreja seja um barco onde possa entrar o povo e um espaço de contínua revelação de Deus. Também o Sr. Bispo centrou a sua homilia na figura de Pedro, caracterizando-o como alguém que oscilava entre os extremos da entrega entusiasmada e da pusilanimidade, traços que também marcam a fragilidade da condição humana de todos nós.

Coube ao Sr. Joaquim Andrade, antes do fim da Eucaristia, agradecer em nome da Comissão Fabriqueira ao elenco de quantos se empenharam na concretização do restauro da igreja, com que todos se sentem orgulhosos. Considerou que foi o padre Almiro o verdadeiro motor deste empreendimento, pois se não fosse ele não haveria obra nem igreja restaurada.

Terminada a Eucaristia, seguiu-se um emocionante ritual a concluir as celebrações deste dia festivo: um pequeno grupo foi com o Sr. Bispo acompanhar o andor de S. Pedro, ao longo da larga embocadura do Douro até onde o rio acaba e o mar começa, numa contida procissão fluvial que integrava um ornamentado conjunto de traineiras de pesca.

Quem conheceu o estado de degradação desta igreja pode avaliar com mais inteireza o grande conseguimento da intervenção aí feita. Os espaços celebrativos foram redimensionados de forma a ficarem mais adequados às suas funções litúrgicas, sem em nada sacrificar a atmosfera devocional da religiosidade popular que caracteriza este templo. Como um dia disse Paulo VI, “a piedade popular manifesta uma sede de Deus que só os simples e os pobres podem conhecer”. Talvez por essa razão, foi respeitada a proliferação de imagens da devoção dos pescadores, melhorando, contudo, o seu enquadramento.

Ao dar mais vida e uma alma nova ao corpo desta igreja, valorizou-se a linguagem dos símbolos, como importantes lugares teológicos a que devemos prestar uma maior atenção, para a que a fé não fique limitada a um exercício intelectual. Como bem nos lembra Sophia Andresen, num poema dedicado à igreja do Marco, «a Casa de Deus está na terra onde os homens estão/Sujeita como os homens à lei da gravidade/Porém como a alma trespassada/pelo mistério e a palavra da leveza».

Manuel António Ribeiro