Factos e Narrativas

“Que é a verdade?”

Pilatos (Jo 18, 38)

A polémica Carta Portuguesa de Direitos Humanos  na Era Digital (Lei 27/2021) no seu artigo 6.º, n.º 1, incumbe o Estado de nos proteger de narrativas de desinformação.

Por Ernesto Campos

No n.º 2  caracteriza essa narrativa. O n.º 3 define o que se entende por comprovadamente falso. Em 4 exclui os erros e a sátira. O n.º 5 remete quaisquer queixas para a Entidade Reguladora e o 6 apoia a criação de estruturas de  verificação de factos e possibilita selos de qualidade da informação. Perante tudo isro, houve receios de que abrisse a porta à censura e ferisse a Constituição, mas parece que não se verificam tais riscos. Em todo o caso, a lei levanta interrogações e reparos.

Antes de tudo, uma lei deve primar pela clareza e esta lei é confusa: dá estatuto a um termo adrede criado – desinformação – para significar o que sempre se chamou, no senso comum,  simplesmente falsidade. E vai ser difícil saber o que é desinformação, tantos são os requisitos que a lei exige. Para haver desinformação, a narrativa tem de ser: comprovada, falsa, enganadora, mal-intencionada, deliberada, ameaçadora, criada, apresentada, divulgada, produzida, reproduzida, difundida, suscetível de causar dano, nomeadamente político. Se faltar algum ou alguns  destes dados, a desinformação deixa de o ser? A confusão sobe de ponto porque o n.º 4 abre a porta, aqui sim, a qualquer parodiante menos escrupuloso que ponha em causa o bom nome de alguém ou faça paródia com algo de sagrado ou tão-só, por natureza, seja credor de especial respeito.

Outra observação a fazer é que esta lei promete muito, mas oferece pouco. Por mais reta intenção que tenha, não assegura a função punitiva do Estado em defesa dos cidadãos, visto que não indica sanções aplicáveis a quem “desinforme”. Remete a verificação dos factos e o juízo verdadeiro ou falso que deles se faça para terceiros; seriam estes, em última análise, os senhores da verdade. E sendo este aspeto o mais melindroso da questão, o Estado lava daí as mãos como Pilatos, que também se interrogava sobre a verdade e dela lavava as mãos.

Se, fora da esfera jurídica. nos situarmos num mais  simples e básico bom senso, talvez, mais facilmente possamos produzir e reconhecer o que. de facto, é  informação  fundada na verdade, na liberdade, na justiça e na solidariedade. Para tanto, é necessário  expurgá-la dos males que sempre a ameaçam: preconceito ideológico, propósito exclusivo de lucro, controlo político, conflitos e rivalidade de interesses… Todavia, esta exigência ética indispensável ao nível da fonte e produção mediática, não exclui de iguais obrigações o utente  dos meios de comunicação social: o primeiro dever do consumidor de informação é o discernimento e seleção dela. E isso, antes de ser matéria de lei, é matéria de educação; educa-se na família, a televisão que se vê ou se rejeita e em família se comenta; educa-se nas leituras que se escolhem e em família e na escola de discutem.

Com efeito, os valores, princípios e normas morais são incontornável dimensão ética da informação/comunicação; e aí, a questão essencial é se contribui para tornar a pessoa do destinatário da mensagem mais humana, mais responsável, mais solidária. A mesma escola que até se ocupa de literacia financeira bem pode  ocupar-se de formar, na consciência da juventude,  o mínimo ético absoluto de respeitar os outros; também, na literacia mediática.