A favor de Valter Hugo Mãe

Foi há dias divulgada a notícia da atribuição do Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (APE), a Valter Hugo Mãe, pela obra Contra Mim, publicada em outubro de 2020 com a chancela da Porto Editora. Não estaremos contra ele, mas sim a favor, apesar do tom irónico deste título, que justifica nestas palavras: “Em tantas ocasiões me ocorre a infância como contra mim. Somos a frente e o verso de uma mesma matéria e conflituamos porque nos queremos imiscuir” (p. 276).

Por M. Correia Fernandes

A escolha é justificada pelo júri do prémio “pela qualidade de construção narrativa, na cuidada arquitectura do texto, e pela expressividade poética da linguagem, na poderosa evocação de tempos e de lugares da infância”, e porque “recria, sensível e ironicamente, o olhar comovido da criança, na descoberta do mundo e das palavras, e nesse gesto de resgate podemos ler a projecção de um autor a desenhar-se perante os seus leitores”.

O Grande Prémio de Romance e Novela, da APE, conta o apoio da Direcção-Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas, tendo sido atribuído pela primeira vez em 1982, a José Cardoso Pires, pelo romance Balada da Praia dos Cães.

Desde então distinguiu autores como Agustina de Bessa Luís, Mário Cláudio, António Lobo Antunes, David Mourão-Ferreira, Vergílio Ferreira, João de Melo, Paulo Castilho, Maria Gabriela Llansol, José Saramago, Helena Marques, Mário de Carvalho, Teolinda Gersão, Augusto Abelaira, Lídia Jorge, Vasco Graça Moura, Gonçalo M. Tavares, Alexandra Lucas Coelho, Hélia Correia, tendo alguns recebido o prémio em dois anos (Mário Cláudio, Vergílio Ferreira, Agustina Bessa Luís, António Lobo Antunes).

Valter Hugo Mãe, nome literário de Valter Hugo Lemos, nascido em Angola em 25 de setembro de 1971 (agora a caminho dos 50 anos, como recorda na última página do livro), é também editor e actor de outras artes, como a música, a televisão ou as artes plásticas, tendo sido contemplado já antes com o Prémio Literário José Saramago (2007, pela obra O remorso de Baltasar Serapião) e Prémio Portugal Telecom de Literatura (2012, pela obra A máquina de fazer espanhóis), sendo considerada como sua obra de  referência O filho de mil homens, 2011.

A obra pela qual recebeu agora o Prémio APE, Contra mim, é dedicada à mãe, Antónia Rodrigues Alves e ao pai, Augusto Pimenta de Lemos. Tendo adotado como nome literário Valter Hugo Mãe, esta é assim sua figura tutelar, mas é significativa a presença também do pai, nesta obra ironicamente titulada Contra Mim, que nasce toda das experiências da sua infância e da edificação literária do universo naturalista em que decorre. É a revivência das memórias de infância o sumo que percorre as veias da narrativa, desde a enfermidade de criança que a ameaçou de morte e à qual sobreviveu pelos cuidados da família. A narrativa percorre os caminhos do tempo e das datas determinantes, como o aparecimento do 25 de abril, em que os pais “estavam de graciosa” e viveram em Lisboa os dramas e as expectativas do movimento dos capitães.

Mas a grande linha de crescimento foi a ligação à terra, com seus espaços rurais (em Paços de Ferreira), que depois desaguam noutro local especialmente simbólico: Caxinas, terra edificada sobre a areia (p. 196).

Curiosa é a narrativa da sua relação com a Bíblia, “que era a própria carne de Deus”, envolta num pano de linho, que o fazia pensar que Deus é um livro, e que traduz o que chama “perplexidade em relação á minha infância”, que é “um espaço de opacidade profunda” (Público, Ipsilon, 8 de janeiro de 2021), e que estarão na raiz da inquietação manifestada pelo autor em relação a Deus e à fé, em declarações recentes à RDP, programa 2.

Estas memórias da infância traçam as linhas de uma vida nortenha, campestre ou próxima da vida marítima, pretexto para criar quadros que poderiam dar pinturas de Cézane ou de Van Gogh, mas que vêem apresentadas com sugestivos títulos para os capítulos que vão percorrendo a vida: “Chamar a cotovia”, “Ideias hexagonais”, “Incentivar todas as sementes”, “pedaços imensos de sol”, “o país onde as mulheres existiam todos os dias”, “as árvores eram óculos dos submarinos”, “A vocação da família é ser outra família também”, até aos “Humilhantes versos de menino”, em terra onde proliferavam “Muitos solteiros e solteiras e casamento no fim”. O tempo de Caxinas é o tempo do despertar da adolescência, vivido ao contacto com os dramas ou tragédias do mar e das ausências. No meio dos pequenos eventos dos dramas da adolescência, ressalta também o fascínio pela poesia, que um dia encontra em António Ramos Rosa.

Os quadros desta narrativa de memórias familiares, infantis e de primeiras juventudes, fizeram-me recordar uma obra do galego- castelhano Camilo José Cela (1916-2002), Prémio Nobel de Literatura e Prémio Cervantes, intitulada La Colmena, não pela temática mas pelo modelo narrativo, construída em quadros do quotidiano que edificam um universo narrativo de uma sociedade compósita da primeira metade do século XX, em que as suas mais de duas centenas de personagens, entre reais e fictícias, constituem o retrato de um universo social, e da qual afirma “La novela no sé si es realista, o idealista, o naturalista, o costumbrista, o lo que sea”. Não contei, e não serão tantas, as personagens deste Contra mim, mas o modelo narrativo edifica um universo pessoal, em que a infância é esse “espaço de opacidade profunda”, como o lembra (Público, Ipsilon). Esta dimensão de espaço pessoal, feito de dados e acontecimentos do quotidiano, contrasta, mas ajuda a edificar aquele espaço social de um tempo vivido em seus espaços e circunstâncias.  Recorrendo ao julgamento de Cela, não sabemos se esta narrativa é “realista, ou idealista, ou naturalista ou o que quer que seja”.

Mas é certamente uma narrativa aliciante o motivadora.