
Na sequência das reflexões do último editorial de Jorge Cunha, importa refletir sobre o universo de mensagens que todos os dias nos chegam, muitas das quais são expressões de uma contracultura dominante, orientada para o exibicionismo pessoal e social, para o superficial e vazio de sentido humano.
Por M. Correia Fernandes
O título deste escrito baseia-se numa observação de Paulo Otero, do Movimento Ação Ética (MAE), fundado por quatro docentes universitários (Bagão Félix, Pedro Afonso e Vítor Gil e o próprio Paulo Otero), na qual afirma na importância de “Denunciar e desmontar uma certa contracultura minoritária, mas que domina as redes sociais e os meios de comunicação social”.
Todos temos verificado a presença obsidiante deste tipo de mensagens, que nos entram pelos telemóveis, pelas pantalhas das televisões ou que enchem páginas de jornais, e que nos assolam os espíritos com banalidades que inserem na sociedade uma mentalidade carente de humanidade e de ideais nobres. Claro que encontramos também notícias e informações de nobreza e dignidade humana, mas quase se perdem nos interstícios do sensacionalismo balofo.
Se, por um lado, sentimos que a nossa mentalidade comum e o sumo profundo do pensamento e do universo dos sentimentos vividos parecem buscar hoje um certo sentido do humano e até do sagrado (como damos conta no escrito de página 15 deste número), por outro lado o universo obsidiante de uma comunicação social maioritária (com que contrasta uma rica comunicação social, no entanto positivamente minoritária) produz uma poderosa sensação de vazio mental, intelectual e sobretudo ético, como têm vindo a denunciar muitas das mais nobres mentes que podem ter algum acesso à comunicação social.
Podemos alegrar-nos com o estilo do discurso de António Guterres ao tomar posse no início do segundo mandato como Secretário Geral das Nações Unidas, ao propor a todos os países (e agentes políticos e sociais) uma atitude “mais transparente e responsável”, a cultivar na sequência da pandemia que atingiu transversalmente as múltiplas sociedades do mundo, sem distinção de ideologias políticas, de regimes de governação ou de mentalidades instaladas, uma pandemia que mostrou a vulnerabilidade partilhada por todos e a interligação de toda a humanidade e que, por isso, implica a necessidade absoluta de ação coletiva. Nesse sentido solicitou aos governos, à sociedade e às organizações políticas uma retoma baseada nos conceitos de Justiça, de Ecologia da Natureza e de sustentabilidade, em que podemos encontrar eco ou ressonância das palavras do papa Francisco, ao afirmar “O urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar… A humanidade possui ainda a capacidade de colaborar na construção da nossa casa comum. Desejo agradecer, encorajar e manifestar apreço a quantos, nos mais variados sectores da actividade humana, estão a trabalhar para garantir a proteção da casa que partilhamos”.
Esta ressonância das palavras de Francisco denota um sentido de aproximação, colaboração e união de todas as sociedades humanas nos caminhos da proposta evangélica da Justiça, raiz de toda a convivência humana e da “grande Paz até ao fim dos tempos”. A linguagem de um agente político não pode assumir caráter confessional. Mas importa evidenciar que as grandes mensagens humanas, quando querem ser construtivas, vão sempre buscar a sua raiz ao universo humanista da palavra evangélica. Essa constatação poderia ajudar o mundo (governos, ideais sociais, movimentos cívicos, organizações políticas) a substituir, na ação política, as dimensões da humana condição da violência e do conflito à ação política da construção de um universo de Justiça. Importa recuperar politicamente este conceito bíblico nas sociedades e nas estruturas humanas. Não se trata de um conceito apenas religioso, mas de um conceito civilizacional.
Importa pois aprofundar a relação entre a religião, a prática religiosa e o universo de uma reinante secularização social, que centra toda a realidade humana na supremacia do profano, das práticas individuais e das miméticas influências comportamentais de sectores mais salientes da sociedade (pela riqueza, pelo exibicionismo corporal ou comportamental).
Esta transmutação de ideais deve tornar-se também uma componente da ação política, que necessita urgentemente de percorrer mais os campos da ética humana e da ética social, superando criativamente a idealização do confronto ou do conflito institucional.
Eis a proposta de Francisco, que pode nortear os ideais da prática política: “a relação íntima entre os pobres e a fragilidade do planeta, a convicção de que tudo está estreitamente interligado no mundo, a crítica do novo paradigma e das formas de poder que derivam da tecnologia, o convite a procurar outras maneiras de entender a economia e o progresso, o valor próprio de cada criatura, o sentido humano da ecologia, a necessidade de debates sinceros e honestos, a grave responsabilidade da política internacional e local”, propondo a superação de uma “cultura do descarte” e lançando a proposta dum novo estilo de vida” (Laudato sì, n. 16).