Sagrado, religiosidade, secularização e prática política

Recebi com gosto um volume da autoria de António Teixeira Fernandes, com o título “Excurso sobre o sagrado”, editado por Edições Salesianas em 2019, 153 páginas.

Por M. Correia Fernandes

Nele se incluem três estudos: “Sobreposição das Camadas Religiosas”, que inclui os temas “Natureza Humana e Sedução do Sagrado”, “Religiosidade Subjetiva e Religião Objetiva”, “A Religião e a Secularização Social”, “Correntes contratantes no catolicismo atual”, “Secularização e Metamorfoses da Religião”, “Cristianização Pessoal e/ou da Sociedade”.

O segundo capítulo aborda um tema particularmente atual: ”A Verdade e a mentira na Prática Política”; o terceiro capítulo analisa outro tema de tratamento atual: “Ética da Vida e Cultura da Morte”.

António Teixeira Fernandes é sacerdote da Diocese do Porto, onde desempenhou missões de grande relevância, como colaborador da Cúria Diocesana, nomeadamente como Juiz do Tribunal Eclesiástico. É Doutorado em Sociologia pela Universidade Gregoriana (Roma), Fundador do Curso de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1985) e quatro anos depois do Instituto de Sociologia daquela Universidade, e em 1991 promoveu a criação da Revista Sociologia. É Professor Emérito da Faculdade de Letras, onde foi Presidente do Conselho Científico e Delegado nacional no Comité para a Investigação Socioeconómica Aplicada, em Bruxelas (1994-1997).

É autor de numerosas obras nos campos da Sociologia (A Sociedade e o Estado, Os Fenómenos Políticos, Olhares contrastantes sobre a Democracia, Para uma Sociologia da Cultura), sendo de referir também as obras Igreja e Estado: à volta do contraditório Bispo do Porto e D. Florentino de Andrade e Silva: Contemplação, Pensamento e Ação).

O recente volume agora publicado constitui um conjunto de reflexões sobre temáticas em que a comunicação social tem abundado, e em que a visão dos métodos da Sociologia deve assumir preponderância interpretativa. Entre elas, as implicações das mudanças tecnológicas, que influenciam a cultura social e “provocam alterações nos mais diversos sectores da vida humana (P. 5), quer no plano da lógica do sistema quer da lógica dos autores. Salienta também a carência de estudos sobre a herança cultural das sociedades, incluindo a filiação religiosa: “Em que medida a renovação religiosa opera na restauração da ordem social é uma questão que merece ser abordada”, bem como a emergência dos movimentos ideológicos e políticos, em que pode discernir novas dimensões da ética política. Uma das verificações que sublinha é “o paradoxo das sociedades liberais” que pretendem valorizar o indivíduo sem desagregar o coletivo (p. 7).

O sentido da presença do universo religioso constitui um facto incontornável, “uma das manifestações mais antigas e mais gerais da alma humana”, no dizer de C. Jung, que passa por conteúdos psíquicos, mecanismos psicológicos, experiências vividas e interiorizadas, todo um universo humano que se exprime de multímodas formas. Por outro lado, “a religião é um sistema simbólico estruturado e estruturante” (p. 25), que passa tanto pelo pensamento como pela vivência quotidiana.

Outro tema de incidência atual é a relação entre a religião, a prática religiosa e a secularização social, a realidade centrada na supremacia do profano, das práticas individuais e das miméticas influências sociais, tendo consciência de que “não existe uma teoria unificada sobre a secularização” (p, 29).

É interessante também a análise das correntes “contrastantes” do catolicismo atual, designadamente os conceitos de conservadores e progressistas ou de “intransigentes e liberais”, bem como as questões da “descristianização”, da prática religiosa, da queda das vocações, das expressões comunitárias, ou a tendência para a diluição da religião nas sociedades modernas. Tudo isto se deve confrontar com o conceito moderno do “retorno do sagrado”, ou da espiritualidade que encontramos na linguagem de muitos criadores atuais em diversas artes.

Outra dimensão sociologicamente analisada neste trabalho é a relação entre a verdade e a mentira na prática, e mais ainda na linguagem política. Percorrendo pensadores, desde Sócrates e Aristóteles, até Kant que propõe “conciliar a política com a moral”, passando pelas propostas como as de Rousseau, Maquiavel ou Max Weber, que procuram explicar e coadunar ação política com a presença da violência. A proposta bíblica e evangélica é a da construção da Justiça.

Num tempo em que o Presidente do Tribunal de Consta lembra que “onde há muitos dinheiros públicos há riscos de corrupção (Público,18 de junho de 2021), num contexto em que se anunciam milhares de milhões de euros para a economia portuguesa (e as outras), estas reflexões constituem um apelo a que estejam presentes e se atenda às dimensões da ética (ou da moral) social, também na esteira da “Laudato Sì”, que propõe que “Compete à política e às várias associações um esforço de formação das consciências da po­pulação” (n.214).

O capítulo final aborda igualmente um tema de atualidade e de legislação em curso: as questões da ética da vida, como o aborto, o tratamento da velhice, a eutanásia e a morte. Vem igualmente na linha dos ensinamentos bíblicos, bem como das propostas pastorais da Igreja, designadamente do papa Francisco, que propõe uma “conversão ecológica, que se requer para criar um dinamis­mo de mudança duradoura, é também uma con­versão comunitária. (n.219).

 

Estamos pois perante uma abordagem a um tempo atual e fundamentada em mestres do pensamento e da Sociologia, sobre assuntos que todos os dias aparecem na comunicação social, contribuindo assim para assentar o conhecimento e o debate no pensamento e na reflexão, contrapostos à superficialidade de muitas propostas ou afirmações correntes.