Foi com inesperada curiosidade que recebemos, tendo como remetente Walter Osswald, um volume da sua autoria com o título Folhas do Caminho. É claramente um título polissémico na sua ambiguidade. Folhas sugere páginas escritas e sugere folhas de árvores que se espalham e alargam o seu ambiente de presença ou de influência. Caminho sugere o espaço, percorrido ou a percorrer, aberto como receptáculo das folhas e sugere o percurso do tempo e da vida.
Por M. Correia Fernandes
Este percurso é felizmente já longo, como anuncia a nota biográfica e curricular do autor inserta nas abas de uma capa que envolve 367 páginas de texto (e não tem imagens), informando, como início do seu longo e suculento currículo a data de 1928, correndo pois 93 anos. O nome é alemão, mas a pessoa é genuinamente portuguesa, no nascimento, no espírito, na família e no trabalho, já que fez toda a sua formação, aprendizagem e ação profissional (como médico) e pedagógica (como professor) na cidade do Porto, e em duas das suas Universidades: a Universidade do Porto e a Universidade Católica, na sua extensão nesta cidade.
Acresce que Walter Osswald nos valoriza como um dos mais atentos leitores da Voz Portucalense: muitas vezes lhe ouvimos referências de cristão atento e de generosidade opinante na sua apreciação, que tinha o sabor de um estímulo e de uma orientação. Por isso lhe estamos gratos.
No dizer da sua proposta inicial do livro, “não de tratando de um pórtico”, os textos apresentados agora em conjunto, veiculam opiniões expendidas nos últimos cinco anos” e “foram grupados em grandes áreas temáticas”. Eis dois critérios, o da atualidade e o dos prismas de leitura, quer de quem apresenta quer sobretudo de quem ler: manifestam uma avaliação valorativa das áreas analisadas e a orientação do leitor para as entrosar e inter-compreender.
São cinco os conjuntos apresentados: Ética e Vida, Saúde, ciência e medicina, Quando a velhice se alonga, Vidas exemplares e “historietas”.
O primeiro conjunto contém reflexões sobre um dos polos temáticos que tem ocupado o autor especialmente nas últimas décadas: os temas relacionados com ética médica e Bioética, entre os quais o da eutanásia, incluindo o relacionamento destes universos com o progresso científico que, lembra, nem sempre é tido em conta em juízos superficialmente formulados. Por isso avança: “A Bioética é reflexão, debate, escuta, procura de soluções convenientes para problemas e procedimentos que afectem a liberdade, a dignidade o bem-estar dos seres humanos; não ambiciona poder… nem o tem efectivamente”… e não desconhece o que a humanidade deve ao esforço dos cientistas”.
Este conjunto termina com uma reflexão oportuna para ser feita por todos nós, os que visam o mundo da cultura no quadro da influência cristã: “Tradição e inovação”, ao reconhecer que “só o cultivo da tradição, depurada de todo o falso e solene aparato que hermeneutas interesseiros lhe atribuíram, nos fornecerá as bases a partir das quais se abalançará o voo para o futuro”.
E a última crónica deste conjunto é uma recordação das palavras ditas na cerimónia de entrega do “Prémio Árvore da Vida – Padre Manuel Antunes”, de que oportunamente demos notícia.
O segundo conjunto olha por várias perspectivas os problemas relacionados com a prática médica, desde as suas questões deontológicas até ao papel da Associação dos Médicos Católicos Portugueses, que ele próprio integra, aos problemas da doença mental, à questão debatida recentemente da fecundação post mortem e aos problemas éticos da vacinação.
A terceira parte é dedicada a universos relacionados com a chamada “terceira idade”: a política social para esse grupo, as questões éticas do envelhecimento, as práticas sociais a ele ligadas.
É digno de um especial interesse afetivo e de reconhecimento a quarta parte, que aborda “vidas exemplares”. São elas a de Luís Archer, sacerdote jesuíta e cientista, autor de Genética Molecular, um dos fundadores da Bioética em Portugal; Jorge Biscaia e Daniel Serrão, outras figuras cimeiras da medicina e da Bioética em Portugal, este a quem chama “homem de cultura”, aplicando-lhe o dizer do velho poema de Ricardo Reis: “Para ser grande sê inteiro… põe quanto és no mínimo que fazes”. Outra figura lembrada, de quem fraternalmente lembra apenas em título o seu nome próprio: João, em texto escrito certamente sob a tristeza acabrunhada da morte, é a de João Lobo Antunes, “médico, cirurgião, professor universitário, ensaísta e escritor, elaborador de doutrina ética, cultor da beleza e da verdade”, figura pública de sábio e cientista que a comunicação social (ao contrário de outros) fez chegar á opinião pública.
Há ainda mais três retratos: Daniel Callaham, a quem chama “um filósofo moral”, Albert Schweitzer, designado “pioneiro da Bioética”, apresentado como “médico, teólogo protestante, organista e especialista em Bach, missionário em África, Prémio Nobel da Paz”, e Simone Weil, apresentada em “dois retratos”, em que evidencia a “extraordinária figura de mulher, intelectual, judia, revolucionária… empenhada de forma radical com a verdade e o bem”, colocada entre a mística do amor e da compaixão, e aproximando-a de Edith Stein e Hannah Arendt, “três grandes pensadoras do século XX”.
O volume conclui com nove “historietas”, narrativas entre a ficção e a reconstituição histórica, de que me apraz realçar a de Cícero, o modelo de cônsul e orador pela república, cuja coragem assinala e apresenta como exemplo de humanismo, citando uma carta sua: “Quando me aproximo da morte sinto-me como um homem que se aproxima do porto após uma longa viagem: parece que avisto terra. Aguardo com serenidade a passagem à imortalidade: ao morrer abandonamos apenas uma pousada e não um lar”. Cícero foi executado no ano 43 a.C. em emboscada às ordens de Marco António, aos 63 anos de idade.
Temos então um retrato multímodo de um universo de muitas e atuais valências: a do universo da Saúde, da Ciência, do Pensamento, dos Valores Morais e em todos eles a da Espiritualidade.