A Festa do Coração de Jesus

Na Exortação Apostólica A alegria do Evangelho – documento programático do seu pontificado – o Papa Francisco valorizou a religiosidade popular ou, na designação que parece preferir, a piedade popular.

Por Secretariado Diocesano da Liturgia 

Da sua quase apologia, destacamos:

«O regresso ao sagrado e a busca espiritual, que caracterizam a nossa época, são fenómenos ambíguos. Mais do que o ateísmo, o desafio que hoje se nos apresenta é responder adequadamente à sede de Deus de muitas pessoas, para que não tenham de ir apagá-la com propostas alienantes ou com um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro. Se não encontram na Igreja uma espiritualidade que os cure, liberte, encha de vida e de paz, ao mesmo tempo que os chame à comunhão solidária e à fecun­di­dade missionária, acabarão enganados por propostas que não humanizam nem dão glória a Deus. As formas próprias da religiosidade popular são encarnadas, porque brotaram da encarnação da fé cristã numa cultura popular. Por isso mesmo, incluem uma relação pessoal, não com energias harmonizadoras, mas com Deus, Jesus Cristo, Maria, um Santo. Têm carne, têm rostos. Estão aptas para alimentar potencialidades relacionais e não tanto fugas individualistas (EG 89-90). Naturalmente, há que balancear esta valorização com as reservas expressas, algumas páginas antes, em relação a um «certo cristianismo feito de devoções – próprio duma vivência individual e sentimental da fé – que, na realidade, não corresponde a uma autêntica “piedade popular”». Para prevenir esse desvio, essas expressões devocionais têm de andar a par com «com a promoção social e a formação dos fiéis» (EG 70).

Pensamos que neste horizonte se compreende melhor a devoção ao Sagrado Coração de Jesus que, em épocas não muito distantes, caracterizou a piedade popular particularmente no mês de junho e que continua a ter como grande referência litúrgica a solenidade do Sagrado Coração de Jesus, na sexta-feira da semana seguinte à celebração da solenidade do Corpo e Sangue de Jesus Cristo.

Foi São João Eudes, com licença do Bispo de Rennes, em França (1672), o primeiro a celebrar esta festa nas igrejas da sua Congregação. Entre 1673 e 1675, Santa Margarida Maria Alacoque, está na origem de um movimento favorável à introdução desta festa na sexta-feira imediata à oitava do Corpo de Deus. Em 1756, o Papa Clemente XIII  aprovou esta festa para algumas regiões e só em 1856 é que Pio IX a tornou obrigatória para toda a Igreja. Leão XIII, por influência da Beata Maria do Divino Coração, conferiu-lhe maior solenidade e decretou a consagração de todo o género humano ao Sagrado Coração de Jesus. Pio XI, em 1928, reformulou a liturgia da festa insistindo no tema da reparação. Pio XII, em 1956, assinalou o 1º centenário da sua introdução universal e voltou a justificá-la com a encíclica Haurietis aquas. Coube a São Paulo VI, em 1970, dar-lhe a fisionomia atual, com a aprovação do Missal Romano reformado segundo as determinações do Vaticano II.

Mas não julguemos que a devoção e o culto litúrgico em honra do Sagrado Coração de Jesus são apenas um fenómeno dos tempos modernos. De facto, o seu ponto de partida é a própria Sagrada Escritura: Rm 8, 28-39; Jo 7, 37; 19, 34…Os Padres da Igreja não deixaram de explorar este filão que foi desenvolvido, sobretudo, por teólogos e místicos da Idade Média como São Bernardo de Claraval, Santo Alberto Magno, São Boaventura, Santa Matilde de Magdburgo, Santa Gertrudes de Hefta, Santa Margarida de Cortona, Santa Ângela de Foligno, Henrique de Suso e muitos outros. Na Idade Moderna, a Companhia de Jesus foi grande promotora da devoção ao divino Coração do nosso Redentor. Basta pensar na grande difusão da oração «Alma de Cristo», atribuída a Santo Inácio de Loyola.

Karl Rahner, jesuíta, um dos nomes maiores da teologia do século XX, assim defendeu a legitimidade deste culto: «a Escritura. a doutrina e a práxis da Igreja, sempre que se referem ao Coração de Jesus, pressupõem este sentido primitivo e totalizante do coração enquanto centro original e mais íntimo da totalidade corporal da pessoa humana. O objeto, portanto, do culto ao Coração de Jesus é o próprio Senhor visto através deste seu coração».