A fé da Igreja na presença real de Cristo Ressuscitado nas espécies eucarísticas é de sempre. É a aceitação óbvia do sentido direto das palavras de Jesus que, na Ceia em que nos deixou este memorial da Sua Páscoa, disse aos discípulos, ao repartir por eles o pão e ao convidá-los a beber do cálice sobre o qual acabara de recitar a oração de bênção e ação de graças: «Isto é o Meu Corpo…»; «Este é o cálice do meu Sangue…».
Por Secretariado Diocesano da Liturgia
Tomando como referência estas palavras de Jesus, explicava São Tomás de Aquino, no hino Adoro Te devote: a visão, o gosto e o tacto falham, só o sentido da audição serve de guia seguro à fé; eu creio em tudo o que disse o Filho de Deus porque não há nada mais verdadeiro do que a palavra da Verdade.
Este sentido da fé na presença real de Cristo sempre guiou os fiéis em relação à Eucaristia: o Seu Corpo e o Seu Sangue, presentes no Sacramento e, desse modo, dados em alimento aos fiéis, são inseparáveis da Sua Pessoa. É Ele, o Ressuscitado, que já está para além das limitações da física, da química e da biologia, Quem verdadeiramente se torna presente deste modo singular para fazer de todos os comungantes um só Corpo e um só Espírito. São inúmeros os textos da Patrística e da Liturgia que testemunham esta inabalável convicção.
Esta unanimidade na afirmação do facto da presença real convivia pacificamente, durante o primeiro milénio, com diversos ensaios de resposta acerca do modo como essa presença se torna real e efetiva. De facto, a linguagem explicativa desse modo regista um certo pluralismo conforme os autores utilizavam conceitos e palavras das correntes do pensamento filosófico e da cultura dominantes. Até que, com a primeira escolástica e o racionalismo lógico, expressões que nos Padres da Igreja tinham um sentido aceitável, passam a ser vistas como negação da realidade da Presença que, precisamente, se queria explicar. Quando, no séc. XI, Berengário de Tours afirmou que a espécie do pão depois da consagração não é o verdadeiro Corpo de Jesus, mas apenas o símbolo da Sua presença, o sentido da fé da generalidade dos cristãos reagiu de forma veemente. Porque na linguagem desse novo racionalismo, o símbolo não é a realidade.
Essa comoção foi sentida por toda a cristandade ocidental que sentiu a necessidade de afirmar e adorar o Corpo (e Sangue) de Cristo presente nas espécies consagradas, de forma tão real e verdadeira como está no Céu, com novas formas de piedade e culto. Assistimos, então, ao pulular de milagres eucarísticos um pouco por toda a Europa: em Portugal é célebre o Milagre de Santarém. Na Eucaristia introduzem-se ritos para exprimir melhor esta fé: é o caso da elevação da Hóstia e do Cálice após as correspondentes palavras de Cristo recordadas na narração da Instituição; e para muitos fiéis – que raramente comungavam – essa contemplação adorante da Hóstia era a forma mais alta e intensa de participar na Eucaristia. O lugar da Sagrada Reserva ganha no espaço das nossas Igrejas um destaque até então desconhecido. Surge uma nova solenidade litúrgica: a Festa do Corpo de Cristo (Liège, na Bélgica 1246), depressa alargada a toda a Igreja (Urbano IV, 1264). Desenvolvem-se formas variadas de adoração às Sagradas Espécies – a Cristo nelas e por elas presente – que culminam na Procissão Eucarística que cedo se tornou uma característica da nova solenidade. Numa palavra: a crise ocasionada por uma explicação deficiente do modo como a presença de Cristo se nos dá de forma real e permanente nas espécies eucarísticas pôs em marcha um claro progresso da fé e da piedade, abrindo caminho a explicações mais consistentes (São Tomás de Aquino e, após a crise Protestante, Concílio de Trento) e, sobretudo, a novas formas cultuais.
Ao celebrar a renovada Festa do Corpo e Sangue de Cristo somos convidados a assumir esta herança de fé e a revitalizar as suas expressões. Hoje, a forma principal do culto eucarístico é a comunhão sacramental. Isso está em linha, seguramente, com a vontade de Cristo que continua a convidar-nos: «Tomai, todos, e comei!; Tomai, todos, e bebei!». Mas, sendo a forma principal, não pode ser a única. A Eucaristia é também mistério de adoração. E, no dia em que deixar de o ser, deixará de ser o Banquete Sagrado em que se recebe o próprio Cristo e se participa no Sacrifício da Redenção, para se degradar numa prática banal.