“Que saudades que eu já tinha da minha alegre casinha, tão modesta como eu…”
Canção Popular
Há dicionários que registam “habitação” como um direito real, isto é, poder imediato sobre uma coisa.
Por Ernesto Campos
É, porém, muito mais do que isso, uma necessidade básica, aliás consagrada na Declaração Universal dos Direitos do Homem, na Constituição portuguesa e na Doutrina Social da Igreja. A questão é que, apesar de tal reconhecimento, essa necessidade básica de proteção pode estar sujeita a contingências tais que se torna, afinal, em problema de habitação – social, económico, urbanístico, estético, ambiental, político… Raramente a questão é encarada no plano pessoal e afetivo, que é a sua dimensão mais profunda e essencial.
A canção popular que citámos aponta esse aspeto pessoal e outras referências se poderiam aduzir: nos desenhos infantis, a criança apresenta a casa com duas janelas e uma porta assimilando-a com olhos e boca a um rosto humano; o Padre Américo considerava “primeiro a casa” como objetivo da Obra da Rua; e o programa estatal “1.º Direito” traduz no duplo significado o mesmo objetivo; Sophia de Mello Breyner Andresen, quando deputada na Assembleia da República, ao discutir-se a problemática da habitação social, defendia que cada um deve ter a casa que quer; coisa de poeta, mas sonho de toda a gente, distante, embora, do direito de muitos. Curioso, ainda, é o comentário do inquilino que a contra-gosto teve de mudar de casa, porque o senhorio lhe impunha um incomportável aumento de renda; desabava ele “pode ser boa pessoa, mas um senhorio é sempre pouco estimável, não produz nada e vive à custa dos outros”.
O desabafo é particularmente pertinente quando a habitação se torna um bem de mercado e negócio atrativo para multiplicar o lucro fácil. O Plano de Recuperação e Resiliência fixa uma verba de 1250 milhões de euros para a habitação. Importa definir políticas públicas para responder à questão estrutural – construir para arrendar ou para habitação própria? Adequar a procura à oferta ou esta à procura? A situação agita o poder autárquico que se vê com habitação degradada, insuficiente, inadequada para as necessidades da sua população; falta habitação e há casas vazias com rendas proibitivas.
Trata-se de dever exigível ao Estado, que parece ter-se desresponsabilizado disso. Revelando-se, assim, o poder central indiferente e incapaz, então, entregue ao poder local esse encargo e os meios necessários e suficientes para tal efeito, em termos de instrumentos legais, recursos financeiros e enquadramento político de princípios éticos e critérios gerais. Um primeiro princípio é que ninguém pode viver sem casa-abrigo-centro-do-mundo onde se possa, no limite, resguardar-se para esconder mágoas.
E um critério também urgente é inverter o paradigma atual. Há que construir em função das necessidades e preferências das pessoas, consultando-as, e não segundo o interesse do investidor. Construir habitações para alugar e “viver dos rendimentos” é, no mínimo, deselegância negocial. Mal vai a uma sociedade que faz da necessidade e direito de habitação um bem de mercado e se sente bem com isso. As casas devem ser reabilitadas para se reconstruírem vidas, porque habitar é possuir um espaço próprio como expressão pessoal acessível a todos sem o estigma de “bairro social” ou “património dos pobres”. Um espaço onde se possa amar, chorar e rezar.