A Igreja Sal da Terra

Houve esta semana dois factos que nos falam do novo lugar da Igreja e na cultura de hoje. O editorial de um influente jornal diário reconhece o papel exemplar que a Igreja católica (e certamente outras Igrejas) tiveram no contexto pandémico.

Por Jorge Teixeira da Cunha

O jornalista estava a pensar, em nosso entender, no influxo da instituição religiosa no respeito pelas regras do confinamento. De facto, salvo algumas excepções pouco relevantes, o comum dos pastores e dos fiéis esteve à altura da sua missão, não forçando a reunião dos cristãos, quando foi necessário manter o distanciamento físico e social. Os lugares de reunião de multidões, como é o caso do Santuário de Fátima, agiram de forma exemplar, desincentivando a peregrinação, com incómodos e prejuízos enormes. Isto é tanto mais importante que seja dito, pois nem sempre as coisas foram assim. A história assinala casos, no contexto de episódios de pandemia do passado, em que os ajuntamentos de pessoas crentes para suplicar o fim dos flagelos, tiveram o efeito indesejado de os difundir e aumentar. Estamos, pois, mais lúcidos e maduros para enfrentar infortúnios com o sentir da fé religiosa, como humanidade e como crentes. Isso nos prova a recente pandemia que, esperamos, esteja a chegar ao seu fim.

O segundo facto passou em letra pequena, mas é também muito honroso para a Igreja Católica. Trata-se de reconhecer que os bispos das dioceses do Sul de Portugal, e as suas comissões Justiça e Paz, tinham divulgado pronunciamentos e desenvolvido acções em favor dos emigrantes mal tratados sobre os quais houve ampla notícia nas últimas semanas. Ocorre assinalar a sensibilidade crente para um problema que foi tratado com escândalo e com hipocrisia em tantos momentos. Não é demais assinalar que os cristãos têm de estar na linha da frente na defesa dos emigrantes e refugiados. A memória crente, tal como a assinala a Escritura, começa com o reconhecimento de se ter sido emigrante explorado em terra estrangeira e de ter sido nesse contexto que Deus rompeu o silêncio para se manifestar à humanidade. Bem hajam, pois, esses crentes que estão na primeira linha da defesa dos pobres e indocumentados.

Estes dois factos levam-nos a uma pequena reflexão sobre o lugar da comunidade cristã na sociedade e na cultura de hoje. De facto, esta forma de presença da Igreja por ocasião do infortúnio e na denúncia da injuria feita a seres humanos é a mais importante, se tivermos em conta a novidade de estilo que é o centro da perspectiva da Constituição sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo (Gaudium et Spes), do Concílio II do Vaticano. Mais importante do que a presença institucional, política e diplomática da Igreja nos países, é a sua presença como companhia às pessoas. A relação ética deve prevalecer sobre a relação institucional, nas novas condições da cultura. Ora, essa mudança de horizonte tem levado o seu tempo a ganhar foros de cidadania na espiritualidade e na pastoral dos dias que correm. Nem sempre esta novidade de estilo nos parece assimilada e compreendida pelas novas gerações de pastores e de militantes, mais sensíveis ao elemento plástico e expressivo do que ao elemento ético e espiritual da presença crente no contexto em que nos é dado viver. Ocorre voltar aos documentos fundadores do sentir da Igreja, de preferência às formas de apreensão subjectiva, mesmo as bem-intencionadas. A Igreja é sal, mais do que estandarte.