Lá se vai Nossa Senhora

Desde 1998, na noite de 4ª Feira Santa, a paróquia de S. Vitor, em Braga, organiza um cortejo bíblico. Numa leitura recorrente da Bíblia, apresenta os momentos nucleares da aliança de Deus com o Seu Povo que conduziram à ‘Nova Aliança’ em Cristo. Prepara e enquadra o Mistério Pascal que a cidade, nos dias seguintes, irá celebrar com duas procissões grandiosas e muito antigas: “Ecce Homo” e “Enterro do Senhor”.

Por João Alves Dias

Numa maiêutica histórica mostra como, pouco a pouco, o Deus da Aliança se vai revelando à humanidade. Começa pela vocação de Abraão, em Ur da Caldeia e, passando pelos Patriarcas e pela Páscoa do povo hebreu, culmina na fuga da Sagrada Família para o Egito: São José conduz a burrinha que transporta Nossa Senhora com o Menino.

Para realçar este caráter propedêutico, os organizadores deram-lhe o título “Vós sereis o meu povo”, mas os bracarenses, que o apadrinharam desde a primeira hora, rapidamente, por uma espécie de sinédoque, ‘batizaram-no’ como “A Procissão da Burrinha”. A dureza da Semana Santa precisava de ser amenizada pela ternura da infância. Maria com o menino ao colo suaviza a visão da “Mãe das Dores” com o filho morto nos braços que irá encher de dor as ruas e os corações.

A Associação Cultural e Festiva “Os Sinos da Sé” que, desde a origem tem enriquecido esta procissão, acaba de editar uma coletânea “com cantigas populares, umas herdadas da tradição, outras criadas em conformidade com modos populares e são cânticos criados para a situação específica da Procissão da Burrinha”. Sobre esta temática apresenta duas canções.

A primeira é uma “melodia de romance criada a partir de uma linha melódica das memórias de um cantar de segada” recolhido em terras da Padrela:

“Lá se vai Nossa Senhora /do Egipto para Belém / Com seu menino nos braços / que nela parece bem/ Avistou um maçanal / oh, que lindas maçãs tem /O guardador que as guarda /cego é que não vê bem.

– Dá-me uma maçã, ó cego / p’ró meu menino comer /- Não lhe dou uma nem duas /dou-lhe as que ele quiser / – Entre a Senhora lá dentro e vá-las já a colher.

“O menino comeu uma / começou o cego a ver / – Cego, quem te deu tal vista /cego, quem te deu tal ver? / – Foi Nossa Senhora a Virgem, só ela tem tal poder.”

A segunda, criada para esta procissão, numa narrativa teológica apela à fraternidade:

“Numa burrinha montada / Amor de mãe, quanto podes! / Maria livrou Jesus / Da mão sangrenta de herodes.

Nesta jornada contou / Com seu esposo, José, / O homem que a apoiou / Sempre ancorado na fé.”

Da procissão da burrinha /Guardemos esta lição: / A vida do outro é sagrada,/ O Outro é meu irmão”.

No mês de Maria, aprouve-me invocar este magnífico trabalho que visa perpetuar a tradição do culto mariano de que faz memória o poema escrito, em 1503, por Gil Vicente, no Auto dos Reis Magos:

”Quando la Virgem Bendita lo parió / Todo o mundo lo sintió /Los coros angelicales /Todos cantam nueva glória.”

Está de parabéns este prestigiado agrupamento cultural pela sua iniciativa que, no dizer da professora Olga Castro, “mistura o popular com o erudito de modo original” e procura, como diz o cântico inicial, preservar os nossos valores “de geração em geração”.