
Quem chega cada manhã ao Terreiro da Sé (do Porto) depara-se com uma grandiosa estátua que supostamente é de Vímara Peres. Todos a podem ver pela sua imponência, mas poucos saberão quem é tão grande homenageado. O turista, acidental ou propositado, olha e vai ler o cartão de apresentação, a natural inscrição que se encontra nos pedestais das estátuas por esse mundo fora. E que vê? Um conjunto de letras metálicas distorcidas, onde se pode discernir algo como ?ARA PERES, e na linha inferior 868-1968. Olhando melhor vê que algumas letras se perderam sobre o lugar onde estiveram e até podem ser identificadas na sua ausência inexplicada.
Por M. Correia Fernandes
O turista sensato pensará: perderam-se as letras de metal, deve ter sido há pouco, ainda não houve tempo de corrigir. Só que a estátua já se encontra naquele estado há muitos anos, nem eu sei já quantos, como diria o Guerra Junqueiro. O desleixo das autoridades responsáveis ignoram supinamente aquele dado, cuja correção custaria alguma atenção e pouca despesa. O profundo mistério das cousas quando se trata de atenção aos nossos monumentos permite tranquilamente que este dado continue assim à vista do turista interrogante e do cidadão acostumado ao triste facto.
Permitam-me então uma mais próxima identificação ao titular do ilustre e maltratado retratado.
Vímara Peres foi um fidalgo e chefe militar de origem galega, que se notabilizou pelo povoamento da região entre Douro e Minho, e sobretudo pela “Presúria” do burgo portucalense, em 828 (data que figura na sua estátua). Esta “presúria” traduz a ação militar que conduziu à expulsão do domínio muçulmano a norte do Douro, de que o burgo portuense era baluarte e que foi por ele tomado, dando origem ao que mais tarde seria a povoação portuense, em frente a outra povoação, a de Cale ou Gaya. Vímara Peres tornou-se assim o primeiro conde de Portucale. Por isso, “Daqui houve nome Portugal”, desta associação linguística, agrícola, comercial, cultural entre Portus e Cale, localidades que o rio não dividia, mas unia, tal como hoje, mesmo sem pontes. Só quase três séculos mais tarde (1140) é que este território se tornaria independente da coroa Leonesa, e que outra pequena fortaleza do senhorio de Vímara se tornaria Vimaranes, em corruptela Guimara(n)es. Os usos da linguagem têm destes fenómenos de palatalização, sonorização e nasalação. Vímara Peres morreu no ano de 873, em Guimarães, apenas 5 anos após a presúria do burgo portuense, contando cerca de cinquenta e três anos de idade.
Este condado de Portucale teve depois vários senhorios, tendo sido herdado pela filha do rei de Leon, D. Teresa, e depois tornou-se base da edificação do reino de Portugal pelo filho desta, Afonso I.
O monumento
Entre as personalidades que se notabilizaram na promoção, por parte do Município portuense, desta homenagem visual a Vímara Peres figura a de D. Domingos de Pinho Brandão, já então ordenado Bispo, que foi professor do Seminário e da Faculdade de Letras do Porto, fundador do Museu de Arqueologia e Are do Seminário (depois sucessivamente acrescentado e aperfeiçoado), que esteve ligado à realização do Congresso Luso-Espanhol de Estudos Medievais, organizado pela Câmara Municipal do Porto (de que era Presidente Nuno Pinheiro Torres), no âmbito do 11.º Centenário da Presúria de Vímara Peres, em 1968 e que teve sessões em locais nobres da cidade, como a Casa do Infante e o Palácio da Bolsa, que teve ainda sessões em Braga e Guimarães, cidades ligadas também à figura de Vímara Peres.
Importa lembrar que a grandiosa estátua é da autoria do conceituado escultor Salvador Barata Feyo (1899-1990), nascido em Angola (Moçâmedes), mas radicado no Porto, que foi professor da Escola de Belas Artes e diretor do Museu Nacional Soares dos Reis e é autor também de numerosas estátuas de vultos da nossa cultura, entre os quais a de Almeida Garrett, junto à Câmara do Porto e do monumento a Rosalía de Castro, na Praça da Galiza (além da estátua de D. João VI, na Praça Gonçalves Zarco no Porto e da Cristo na cruz do Santuário de Fátima, e de esculturas de grandes figuras da cultura e da história portuguesa, como Silva Porto, Alexandre Herculano e Antero de Quental, em Lisboa).
A D. Domingos de Pinho Brandão foi cometida a apresentação do referido Congresso de Estudos Medievais, tendo merecido prolongados aplausos dos congressistas. Nele afirmava: “Passa-se este ano o 11.º centenário da presúria ocorrida em 868 do território portucalense…
Chama-se este Congresso Luso Espanhol, porque os temas [das cinco secções] interessam especialmente a Portugal e Espanha…. Mas há Congressistas do Brasil, da Inglaterra, da França, da Itália da Alemanha, dos Estados Unidos, do Canadá e da Rússia… Por isso pode chamar-se internacional… e será um magnífico certame cultural que lançará muita luz sobe um tempo da história em que, a par de clareiras, há muitas lacunas, dúvidas e incertezas”, lembrando que antecipou a reconquistas cristã e a conquista de Ceuta.
O Congresso teve cinco secções: História politica e militar, História eclesiástica, Instituições de cultura, Aspectos económicos e sociais, Arqueologia e Arte. Segundo ele, constituiria ocasião para o desenvolvimento de novos estudos e estudos mais profundos sobre estes períodos da
História, e anunciava-se a publicação das respetivas Actas, “que ficarão a perpetuar o acontecimento”.
Reabilitemos então a figura da Vimara Peres, agora que se aproxima a época turística e quando até já se veem alguns pequenos grupos por aí. E já que se reabilita o edifício da Catedral, faça-se também justiça ao seu precursor, identificando com dignidade a estátua em sua memória, gesto também devido ao seu autor Barata Feyo.