
“Quando damos aos pobres as coisas indispensáveis (…) devolvemos-lhes o que é deles. Cumprimos um dever de justiça.”
S. Gregório Magno
Numa sociedade de clero, nobreza e povo aceitava-se a desigualdade e considerava-se, mesmo, que assim estava bem para garantir a boa marcha da vida. Os pobres não se envergonhavam de ser pobres; justificava-se, até, “pobres sempre os tereis convosco”.
Por Ernesto Campos
Havia o dever de ajudar os pobres quer na relação interpessoal quer em instituições com mais ou menos reta intenção; mas ninguém pensava em erradicar a pobreza. Numa democracia liberal não é assim. Somos todos iguais e a pobreza é nódoa vergonhosa, intolerável numa sociedade civilizada, injustiça clamorosa para quem a sofre.
Todavia, “como é possível que ainda haja, no nosso tempo, quem morra de fome, quem esteja condenado ao analfabetismo, quem viva privado dos cuidados médicos mais elementares, quem não tenha uma casa onde abrigar-se? E o cenário da pobreza poderá ampliar-se ilimitadamente se os ambientes e categorias dotados de recursos económicos, mas sujeitos ao desespero da falta de sentido, à tentação da droga, à solidão na velhice ou na doença, à marginalização ou à discriminação social.”
Como é possível? O desabafo é de João Paulo II na Encíclica Novo Milenio Ineunte, do ano 1 deste século. É retrato fiel da situação de hoje, porventura pior, mas veremos o que o senso de 2021 vai revelar.
Segundo INE, em Portugal, 1/5 da população vive em situação de pobreza (2019); e, segundo um estudo recente. continua a haver pobres, uns porque o subsídio de desemprego não chega, outros, porque tendo trabalho, o salário também não chega para “comer, vestir, habitar e procriar”. É eloquente o testemunho daquela mãe solteira com quatro filhos que ganha o salário mínimo. Esta família não sobreviveria sem a ajuda de organizações da sociedade civil que lhe dão a mão e o pão nosso de cada dia. Bem pode dizer-se que um tal modelo de sociedade tem de ser repensado.
O Estado procura minimizar com apoios financeiros estas carências na convicção de que protege os cidadãos do berço ao túmulo. Uma proposta recente, semelhante ao que se fez nos EUA, sugere que a UE dê 1000€ a cada pessoa necessitada. É dinheiro que dinamiza a economia aumentando o consumo, mas não tira as pessoas da pobreza. Há, porém, quem vá mais longe e defenda que a cada cidadão seja atribuído, sem mais, um rendimento incondicional básico. Isso sim, diz-se, erradicaria a pobreza mesmo sem obrigação de trabalhar. É viável? Há experiências, com sucesso nos EUA, Canadá, Macau… É justo? Injusta é a pobreza e uma sociedade que não remunera adequadamente o trabalho que a suporta. Mas considerar o trabalho um estigma é igualmente injusto, porque o trabalho é parte integrante da condição humana e ponto de honra tal que nenhum cristão pode sentir-se no direito de não trabalhar.
Estigma, de facto, é a pobreza. O estudo citado revela que, hoje, os pobres têm vergonha e não se assumem como tais ao comparar-se com os outros; e cita que “a maioria se considera feliz”. É um mecanismo de defesa e a consciência da dignidade pessoal, apesar de tudo.
Repensar tudo significa, pois, que o tudo é a pobreza e os pobres e a riqueza e os ricos; logo na escola, uma revolução cultural, como diz João Paulo II, “tecida de solidariedade”.