Recebemos de um prezado assinante esta missiva:
Envio pagamento da VP, que assino desde os primeiros números. Há uma coisa que refiro: não me agrada a obediência ao Acordo (desacordo) da nova ortografia. É um autêntico disparate. Por isso não foi assinado por todos os países lusófonos. Sinto arrepio ao ler o pedido de profissional de saúde: “Obrigada por usar máscara!” Devia saber que obrigado é uma interjeição e como tal é uma palavra invariável. Tenho muita pena! Tantos disparates! É pena perder-se o étimo de muitas das nossas palavras. Causa dor! Defendamos a nossa língua. Já dizia F. pessoa: “A minha Pátria é a Língua Portuguesa” (…). Um amigo e condiscípulo.
(José Quintas da Rocha, Castelo de Paiva)
Obviamente, começo por agradecer a atenção do prezado assinante e a atualização da assinatura: é sempre um gesto amigo. Respeito também a sua oposição tão visceral ao acordo ortográfico de 1990. Como terá lido em algumas coisas que tenho escrito em relação ao dito acordo, não tenho sido por sistema contra, mas há aspectos em que não estou de acordo, e tenho-o manifestado e merecido até citação das minhas observações, que pouco valerão mas que ao menos despertam a atenção.
Por M. Correia Fernandes
O acordo tem alguma razão de ser. Apenas foi não completamente elaborado e foi mal divulgado, sem a necessária fundamentação. Não se elaborou em tempo útil um vocabulário que fizesse distinguir as palavras em que se deveria manter a grafia tradicional (e etimológica). Sobre aquilo que escrevi recebi uma referência no “Público”, que achava curiosas as ideias que propus, mas lamentava que continuasse a usar a ortografia do acordo de 1990.
Nos escritos da Voz Portucalense há quem siga o acordo de 1945 e outros o de 1990. Não nos zangamos com uns nem com outros.
Convém lembrar que o acordo de 1990 segue o mesmo princípio do de 1945: a eliminação na escrita das consoantes mudas, que não são pronunciadas na linguagem corrente. Ninguém leva hoje a mal que não se escreva, por exemplo, victima, fructo, producto ou parágrapho e pharmácia, como escreveu por exemplo Fernando Pessoa e seus contemporâneos e até escritores posteriores. A quando da publicação de uma memória do primeiro número de “A Voz do Pastor”, propositadamente transcrevi a ortografia usada nesse número (e nos seguintes), para podermos constatar as transformações ortográficas verificadas. O princípio é o mesmo, como foi introduzido em 1945 por Rebelo Gonçalves, que no entanto teve o cuidado de redigir o “Vocabulário da Língua Portuguesa”, coisa que, apesar de vários dicionários, ainda não foi feita em relação ao acordo de 1990.
O que proponho é que se deveriam pronunciar e escrever palavras como sector, característica, adictivo e adicção (para distinguir de aditivo e adição), óptico (para distinguir de ótico) e similares. Ainda há dias se viu escrito na televisão “ilusão ótica” e “ilusão tátil” (por óptica e táctil).
Esta seria boa norma de orientar a escrita para a pronúncia de tais palavras que se deviam escrever e pronunciar, numa pedagogia para tornar algumas consoantes mudas em pronunciadas.
Essa era uma orientação que escapou aos autores do atual acordo, mas que tornaria pedagógica e orientadora a norma, como propunha no escrito “Vamos aprender a pronunciar a língua portuguesa”. É neste domínio da pronúncia correta que se situa o problema atual do uso da nossa língua secular.
De resto, parece que no demais não virá grande mal ao mundo nem à língua pelo acordo, ainda não ratificado. Talvez valha a pena repensá-lo e reorientá-lo, tanto mais que alguns dos seus autores e edificadores, como João Malaca Casteleiro (1936-2020) já faleceram (como faleceram muitos dos seus opositores, como Vasco Graça Moura – 1942-2014, aliás notabilíssimo como poeta e tradutor de obras como a Divina Comédia ou as Rimas de Petrarca, ou os Sonetos de Shakespeare).
Obrigado pelo “obrigado”- O uso obrigada está há muito institucionalizado. Há dias uma simpática lisboeta, autora de livros de bem falar, defendia na rádio que o sentido de obrigada (adjetivo) traduz um sentimento da pessoa mulher em relação a qualquer favor ou deferência. Talvez mais ridículo possa ser o obrigadíssimo(a), que se introduziu numa forma de linguagem coloquial, geralmente tradutora de atitude subserviente ou superficial. Tal como o despropositado “certíssimo” usado nos concursos televisivos. Confrontando com línguas mais próximas de nós, temos outras soluções, como o “gracias” espanhol, de perfeito sentido, abreviando “Le doy las gracias”, ou o “merci” francês, ou o “thank you” inglês, ou o “danke schön” alemão, que colocam o sentido na ação ou atitude (agradecer) e não no seu autor (obrigado(a), ou agradecido(a)).
Mais digna de registo e de discordância é a insistência jornalística em palavras como poetisa (por muito que as melhores poetas afirmem que são poetas e não poetisas), ou maestrina, feminino de maestrino, que designa o maestro pretensioso e incompetente. Felizmente que ainda não apareceu por aí alguém a falar em “arbitirinas”. E não encontramos ainda quem, para afirmar a supremacia masculina na questão de género, proponha também as formas atletos, ginastos, futebolistos ou assim, como judocos, já que estamos em tempo de consagração delas (e deles).
O mais trágico que acontece à língua portuguesa é outra coisa: o afogamento em estrangeirismos, sobretudo anglicismos (enquanto não surgir por aí a influência do chinês, que é a língua mais falada no mundo)…
Recomendo e leitura do texto de Nuno Pacheco, no Público de 14 abril de 2021, bem como o texto do nosso colaborador Manuel José de Almeida e Silva (que escreve segundo o acordo de 1945), em VP de 30 de setembro de 2020, ou o que escrevi em 13 de maio de 2020 a propósito do Dia da Língua Portuguesa, de que recordo esta passagem:
“Também seria útil à nossa portuguesa língua que fosse ensinado aos senhores ministros, deputados, jornalistas, comentadores desportivos e divulgadores do coronavírus da capital que não pronunciassem púrque (em vez de porque), priúdo em vez de período (com acento no i) ou xesso, ou xessivo em vez de excesso ou excessivo”.
Ainda há dias ouvi repetidamente dito no programa 2 da RDP a expressão “rúbrica” (em vez de rubrica), contrariando os Dicionários, por exemplo o de José Pedro Machado (ed. da Sociedade de Língua Portuguesa, em 12 volumes), que expressamente escreve: “é incorrecto o uso da forma rúbricaI”. É palavra que não existe em português. Mas diz-se, como alcoolémia e glicémia (em vez de alcoolemia e glicemia). Entendo por isso que um sentimento que importava inserir no português corrente era a adequada pronúncia das suas palavras, para ajudar à justa captação dos seus conceitos.
Chamo também a atenção para um fenómeno que ignorava, e que vem referenciado no escrito de Nuno Pacheco (Público, 15/4/2021), o da “ortografia inclusiva”, referindo de forma crítica que algumas universidades britânicas estão a “testar o que julgam ser um grande avanço no seu sistema de ensino: admitir erros ortográficos na escrita dos seus alunos”, chamando-lhe “novo paternalismo colonial”.
“E esta, hein?”