Foi no ano 2000 que o Papa João Paulo II declarou o segundo domingo da Páscoa como Dia ou Festa da Divina Misericórdia em toda a Igreja. A decisão fundou-se em mensagem ou revelação da uma figura de religiosa polaca, Faustina Kowalska.
Por M. Correia Fernandes
Já antes, em 1980, tinha publicado a Carta Encíclica “Dives in Misericordia” (Deus, Rico em Misericórdia), acentuando que a ação divina em relação a cada pessoa humana e a toda a Humanidade tem a sua raiz na Misericórdia, que o próprio Jesus Cristo deixou plasmada na oração que ensinou aos discípulos de qualquer época da História, do passado inicial, do presente dramático de qualquer tempo vivido e no futuro que esperamos venha a descobrir as dinâmicas salvadoras da condição humana, através da ação quotidiana, das descobertas, das invenções, da tecnologia dominante e de todas as partículas da matéria e de todos os movimentos da alma humana.
Na homilia do Domingo da Misericórdia, o Papa Francisco, recorrendo ao seu processo pedagógico e interpretativo da condição humana, que consiste a dar rosto quotidiano e concreto aos princípios emanados da Escritura e da Fé, recomendava: “Obtivemos misericórdia, tornemo-nos misericordiosos. Com efeito, se o amor acaba em nós mesmos, a fé evapora-se num intimismo estéril. Sem os outros, torna-se desencarnada. Sem as obras de misericórdia, morre (cf. Tg 2, 17). Deixemo-nos ressuscitar pela paz, o perdão e as chagas de Jesus misericordioso. E peçamos a graça de nos tornar testemunhas de misericórdia. Só assim será viva a fé; e a vida unificada. Só assim anunciaremos o Evangelho de Deus, que é Evangelho de misericórdia”.
Uma das dimensões do pensamento e das normas jurídicas, éticas e morais, que anda baralhada e confusa nos nossos dias, é a das relações entre Justiça e Misericórdia. Lembremos que já João Paulo II, na sua Carta de 1980, abordava o assunto, na esteira das muitas propostas do ensinamento e tradição da Igreja, e confrontava o sentido da Misericórdia com o sentido da Justiça, ao afirmar “É evidente que exigência tão generosa em perdoar não anula as exigências objetivas da justiça. A justiça bem entendida constitui, por assim dizer, a finalidade do perdão. Em nenhuma passagem do Evangelho o perdão, nem mesmo a misericórdia como sua fonte, significam indulgência para com o mal, o escândalo, a injúria causada, ou os ultrajes. Em todos estes casos, a reparação do mal ou do escândalo, a compensação do prejuízo causado e a satisfação da ofensa são condição do perdão”.
Na sua Encíclica “Laudato Sì”, Francisco propunha a dimensão o mais alargada possível do espírito cristão, ao propor uma espiritualidade traduzida de forma concreta nos comportamentos sociais, no relacionamento com a natureza, na introdução nas tarefas educativas desta dimensão da mensagem cristã fundada no evangelho e na “grande riqueza da espiritualidade cristã, proveniente de vinte séculos de experiências pessoais e comunitárias, magnífica contribuição para o esforço de renovação da humanidade” (n. 216 e seg.).
Entre essas dimensões propunha uma conversão ecológica, uma prática do amor civil e político, a criação de uma componente educativa que oriente crianças e jovens para a cultura da vida e da convivência social baseada na compreensão e no diálogo.
Tudo isto se relaciona com os acontecimentos vividos nos últimos dias, com o ambiente de animadversão social que identificam um espírito não de misericórdia, mas de vingança, tanto da parte de acusados como de criadores de opinião, numa opinião pública rapidamente disseminada cujos julgamentos, geralmente propostos sem conhecimento dos factos e das causas, se situam no espectro da condenação e raramente da compreensão. Recordemos que se perdoar não anula as exigências da justiça, também a justiça bem entendida deve conduzir ao perdão e à transformação e não á vingança. Tal é aliás a finalidade do sistema prisional: a recuperação plenamente humana de quem teve alguma fraqueza.
É pois significativo que tudo isto suceda no contexto do Domingo da Misericórdia, que também se poderia chamar da Justiça bem ordenada. Será que a nossa sociedade poderá tornar-se sensível a isso?