São dois rostos de trabalho e disciplina no serviço dedicado à diocese do Porto. Chamam-se Belmiro Costa e João Paz. Neste ano de 2021 completam 20 anos na missão de arquivistas. Desde 2017 também acumulam as funções de notários da Cúria Diocesana. Voz Portucalense foi ouvi-los. Em discurso direto.
Entrevista conduzida por Rui Saraiva Fotos João Lopes Cardoso
Parece já longe o mês de fevereiro de 2001 quando Belmiro Costa e João Paz iniciaram o trabalho como arquivistas da diocese do Porto, mas ambos recordam “perfeitamente” esse dia. “Guardarei sempre essa quinta-feira, 1 de fevereiro de 2001 na minha memória como um dos dias mais importantes na minha vida” – diz João Paz. Belmiro Costa refere que “não foi fácil a entrada de duas pessoas novas, e logo para o arquivo, mas passo a passo fomos ganhando confiança e autonomia” – afirma.
Voz Portucalense foi ouvir a opinião e reflexão de ambos na celebração de duas décadas de serviço à diocese do Porto. Em discurso direto. As perguntas foram estas. As respostas as que se seguem.
1) Celebra 20 anos de serviço à diocese do Porto como arquivista. Recorda o dia em que iniciou a trabalhar na diocese? Qual a missão que lhe foi entregue?
2) Nestes 20 anos quais os trabalhos realizados que recorda com especial memória?
3) Que relíquias históricas guarda o arquivo da diocese do Porto?
4) Que papel podem ter os arquivos diocesanos na criação da memória das Igrejas locais?
5) Para o futuro, que missão pode ser cumprida pelos arquivistas da diocese do Porto como guardiões da sua história?
Belmiro Costa, 44 anos
“É necessário que se desenvolva uma atitude pastoral que defenda o património arquivístico como bem eclesiástico”
1) Sim, lembro-me perfeitamente desse dia 1 de fevereiro de 2001. Cheguei por volta das 9 horas da manhã e o Cónego Artur, abriu a porta de acesso ao arquivo, mostrou-me a sala de trabalho, entregou-me a chave com a indicação de que esta teria de ser entregue antes de almoço e levantada depois do almoço, bem como ao final do dia. A primeira missão foi um documento, que já não me recordo qual, para fazer a sua transcrição, aquilo que poderemos dizer: vamos ver o que vales e o que sabes.
Não foi fácil a entrada de duas pessoas novas, e logo para o arquivo, mas passo a passo fomos ganhando a sua confiança e autonomia para começar a desenvolver o trabalho para o qual fomos contratados e tivemos formação.
2) Em 20 anos são muitas as memórias e as vivências que se guardam. São dois ou três os trabalhos que mais me marcaram. Um deles foi a inventariação do fundo das Igrejas e Capelas, é um fundo que com documentação relativa à tramitação das licenças de erecção, bênção, visitação, dote, dedicação de altares e de Igrejas e capelas, que é composto por 1215 processos.
Um outro projeto que ainda em curso, mas que me tem dado um certo gozo é a inventariação dos processos de Ordenação (diligencias de ordens) anteriores a 1915 e a consequente publicação em separata das Inquirições de Genere.
No entanto, as minhas funções não se esgotam no arquivo, para além da colaboração nas ordenações e entradas de novos bispos ou o falecimento de outros, o acontecimento mais marcante foi sem dúvida a colaboração na visita de Sua Santitade Bento XVI à cidade do Porto a 14 de Maio de 2010.
3) Por incrível que pareça, uma diocese como a nossa com 900 anos de história não tem um arquivo histórico tão rico e valioso como muito bem se pode pensar que tenha.
A sua tipologia documental não é muito variada, além da documentação já referida, este acervo na sua maioria é composto por documentação produzida pela Camara Eclesiástica e pelos registos paroquiais incorporando um fundo do Tribunal Eclesiástico.
A documentação mais antiga data da década de trinta do ano 1500 e é relativa aos tombos do regimento da colação de igrejas. Existe também, mas já para finais do séc. XVI, um auto de capela e um processo de ordenação. São as relíquias que temos!
4) Como muito bem diz e sintetiza a Carta Circular sobre a “Função Pastoral dos Arquivos Diocesanos” de fevereiro de 1997: “É Cristo que actua no tempo e que escreve, precisamente Ele, a sua história, de maneira que os nossos pedaços de papel são ecos e vestígios desta passagem da Igreja, ou melhor, da passagem do Senhor Jesus no mundo. E eis que, então, o ter o culto destes papéis, dos documentos, dos arquivos, quer dizer, por repercussão, ter o culto de Cristo, ter o sentido da Igreja, dar a nós mesmos e dar a quem vier a história da passagem desta fase do transitus Domini no mundo”.
Conservar, pois, este património para o transmitir às gerações futuras é um empenho notável, como o de o valorizar oportunamente para a cultura histórica e para a missão da Igreja”.
Os arquivos diocesanos são, pois, os lugares da memória eclesial que deve ser conservada e transmitida, reavivada e valorizada, pois representam a mais directa ligação com o património da comunidade, para além da função de preservar esta memória, eles têm também uma função cultural e pastoral.
5) A preocupação primeira em relação ao arquivo da nossa diocese é, certamente, a de conservar um tão precioso património com diligência a fim de o transmitir integralmente aos vindouros.
A conservação é uma exigência de justiça que nós hoje devemos àqueles dos quais somos os herdeiros e o desinteresse é uma ofensa aos nossos antepassados e à sua memória.
Portanto, é imperioso que os Bispos diocesanos observem as disposições canónicas a respeito e diria que o futuro passa por aplicar as diretrizes que vêm na Carta circular, mas para isso é necessário que se desenvolva uma atitude pastoral que defenda o património arquivístico como bem eclesiástico e que este deixe de ser o “parente pobre” da Igreja. É claro que todo o processo de potenciamento do arquivo histórico diocesano, requere pessoas qualificadas, tempo e dinheiro.
João Paz, 43 anos
“O paradigma atual da ciência arquivística é fazer do arquivista um gestor de informação”
1) Tínhamos acabado a nossa formação em arquivo há poucas semanas, e a missão que nos foi entregue, logo no primeiro dia: “Arrumem”! Esse “arrumem” foi um misto imediato de orgulho – afinal de contas é um prestígio enorme trabalhar para uma instituição nobilíssima como a Diocese do Porto – e de uma responsabilidade quase esmagadora, uma vez que o arquivo diocesano é composto por quase 2 quilómetros lineares de documentação. À distância destes 20 anos não deixa de ser uma honra sentir que a Diocese do Porto confiou em dois jovens para tão importante tarefa.
2) Todos os já realizados e os que ainda se hão de realizar, são de igual modo importantes. O trabalho de um arquivo eclesial mais não é do que preservar a memória da igreja que se quer viva, e como dizia o Papa Paulo VI, “os arquivos da igreja conservam o traço da presença de Deus na vida e história dos homens”. Em suma, é tão necessário guardar a memória de um ato sacramental, como um batismo de uma criança, como uma carta pastoral de um bispo.
3) Apesar de todas as vicissitudes porque passaram os arquivos eclesiásticos em Portugal, e em particular o acervo documental da Diocese do Porto, o nosso arquivo possui bastantes tesouros arquivísticos como são os casos das inquirições de genere (peças documentais para as ordenações sacerdotais) ordenações, os autos de património de capelas, entre outros, num conjunto documental que vai desde o século XVI até ao dia de hoje. Até ao dia de hoje porque atualmente os arquivos deixaram de ser entendidos como mortos/ históricos em contraponto com correntes, ou seja, são um corpo vivo e pleno de informação, reflexo que são de uma instituição também ela viva e produtora de informação.
4) O relacionamento entra a diocese e as igrejas locais, que são as paróquias, as diferentes ordens e institutos religiosos, bem com as inúmeras instituições e associações religiosas, são todas elas produtoras de documentação. Essa mesma documentação reflete, além da óbvia vivência de cada uma dessas instituições, mas sobretudo o pulsar das comunidades onde se inserem. Os arquivos diocesanos deverão refletir essas características e respeitá-las, no sentido de dotar as instituições locais de meios para poderem conservar os seus arquivos de forma capaz. Ao invés de fazer com que o arquivo diocesano seja um deposito central de documentação de toda a diocese, é fundamental fomentar e dotar de meios para que cada local seja ele próprio depositário da ação da igreja no seio das populações.
5) Um arquivista já não é apenas um guardião da história. O paradigma atual da ciência arquivística é fazer do arquivista um gestor de informação, que como noutras áreas, carece de constante formação, e para o caso do nosso arquivo e instituição, a experiência adquirida ao longo destes anos, é também de primordial importância. Essa gestão da informação é paralela à manutenção e preservação de toda a memória documental já produzida, e ao funcionamento da instituição no seu quotidiano, em que a informação é disponibilizada rapidamente após ser requerida. O futuro do arquivo da diocese passa por perceber e respeitar o passado da instituição, e preparar o legado para os que hão de vir, porque as pessoas vão passando, mas a instituição permanece.