
Foi dado, por estes dias de Páscoa, algum relevo ao fim da Inquisição em Portugal. Isso aconteceu na Primavera de 1821, como consequência da Revolução Liberal desencadeada na Cidade do Porto no ano anterior.
Por Jorge Teixeira da Cunha
Lembramos que o Tribunal da Santa Inquisição, ou do Santo Ofício, foi uma triste forma de julgar e condenar delitos de opinião, ou de matéria de fé ou de moral. As vítimas foram principalmente crentes da religião judaica ou intelectuais acusados d diversas formas de falta de ortodoxia religiosa ou de imperfeita inclusão nas ideias dominantes da sociedade dos tempos medievais e modernos. São especialmente conhecidos, entre nós, os processos contra Damião de Góis ou contra António José da Silva, o Judeu. Mas muitas outras pessoas anónimas foram vítimas dessa instituição injusta e estranha.
Nos dias de hoje, está longe de haver um juízo isento sobre este assunto. De um modo geral, a historiografia sofre de um triunfalismo interpretativo. Queremos com isto dizer que coloca o odioso da perseguição inquisitorial do lado da Igreja Católica. Ora isso não é justo. Vamos, por isso, tentar enunciar alguns princípios para tratar deste assunto, mesmo tendo em conta que se trata de um tema muito polémico.
O primeiro que há a ter em conta é que a Inquisição foi fundada por uma sociedade que responde por ela como um todo. Quem quis a Inquisição foi, primeiramente, a instituição política. Nos países que tiveram Inquisição, o interesse primeiro era do Rei, que visava o domínio da cultura, a uniformidade das opiniões, que queria espoliar os judeus do seu poder financeiro e outros objectivos semelhantes. As classes sociais do tempo tinham igualmente os seus motivos para manter a Inquisição: a nobreza, para manter os seus privilégios; a burguesia para tomar o lugar dos possuidores eliminados por processos de justiça duvidosa. O povo simples, por sua vez, gostava de assistir aos Autos de Fé, com essa doença de alma que sempre se compraz na visão da dor e do sofrimento alheio.
Depois, há que ter em conta a Igreja. Hoje lamentamos que poucos tenham sido os eclesiásticos e teólogos que tenham manifestado a sua oposição ao Santo Ofício. Mas temos de ter em conta que ninguém está acima do seu tempo. Em Portugal, alguns dos que eram contra a Inquisição tiveram de emigrar, como é o caso de Luís António Verney, ou do Cavaleiro de Oliveira. Antes disso, D. Miguel da Silva (1480-1556), um bispo grande proprietário na Cidade do Porto, que foi contra o estabelecimento da Inquisição em Portugal, pagou com o banimento e o exílio a sua ousadia. Bem gostávamos de poder enumerar um movimento expressivo de oposição ao Index e à Inquisição. Mas ainda não tinha chegado o tempo da lucidez que o justificou. É necessário um grande nível de humildade e de inteligência para fazer um juízo histórico sobre este assunto.
A interpretação do facto histórico que foi a Inquisição necessita de uma componente moral. Em certo sentido, ela corresponde ao que os moralistas antigos chamavam consciência moral invencivelmente errónea. Trata-se de um facto objectivamente imoral, mas que os nossos antepassados não tinham ainda condições para denunciar e para combater. Por isso, pactuaram com o facto. E Deus, na sua infinita sabedoria, há-de saber como lidar com esse assunto. Pois há pessoas, que consideramos santas, que viveram e agiram como inquisidores, e viveram nesse tempo de crueldade. Talvez, no futuro, também digam de nós algumas coisas semelhantes.
Sem querer justificar, de modo nenhum a Inquisição, há que lembrar que são conhecidos processos movidos por esse tribunal contra abusadores de crianças, um crime que só três séculos mais tarde teve uma lei positiva civil penalizadora. E outro interessante facto: no Porto, apenas consta um único processo inquisitorial, com pena de morte. Quando a Cidade viu do que tratava reagiu com convicção contra essa forma de proceder que nunca mais se aplicou.