Um teólogo (des)embrulhado na (p)an(d)emia (15)

Foto: João Lopes Cardoso

Permitam-me iniciar este texto por trazer à memória o capital daquilo que escrevi no anterior. Fora de qualquer cognição espiritual (derivada da nossa primeiríssima constituição ontológica) dos problemas da relação do ser humano com Deus (e, nesta, com tudo o mais), nada do que estamos a viver nesta crise pandémica pode ser substancialmente conhecido e rectificado.

Por Alexandre Freire Duarte

Se a realidade é assim, devemos encará-la de frente desde o único ponto central da nossa relação com Deus: Cristo Jesus pascal. E isto, seja, primeiro, n’Ele mesmo na Sua condição de Felicidade de Deus (a que estamos chamados). Seja, após, em tudo aquilo que d’Ele dimana mais directamente enquanto, num Seu mistério que é o da própria da Igreja, Ele próprio Se faz servo de todos nós numa desapropriação total de Si: o amor perdoante e a humildade divinizante.

Estamos, é claro, diante de traços permutáveis estritamente espirituais antes de poderem vir a ser vistos, quiçá com toda a justiça, como outra qualquer coisa. E isto, até porque a espiritualidade não é uma vertente da vida cristã anexa às demais, antes a moldura de vivência de todas estas. Deveras, a vida espiritual é, sem mais, a vida cristã, a qual é, toda ela, uma vida de comunhão pascal participativa na existência, tão histórica quão gloriosa, do Senhor.

Só quando isto se tornar conatural a nós, é que poderemos divisar estratégias (a outros níveis) para intervir no cenário que estamos a padecer. Inverter esta sequência de prioridades, não só nada sanará nele, como até o fará adoecer mais. E fá-lo-á, pois não se estará a levar em conta os caminhos mais seguros para se lograr o que ainda creio que todos nós, de uma forma ou de outra, queremos: uma vida de fecundo amor consumador da liberdade em chave de responsabilidade (também cósmica) em Cristo.

E que caminhos são esses? Já os conhecemos desde que o Cristianismo é Cristianismo, e eu mesmo já os fui apontando ao longo desta rubrica. Mas deixo-os aqui do modo mais compacto de que sou capaz: uma atitude amorosa de serviço eucarístico na verdade, beleza e alegria face a Deus, aos demais e ao restante da Criação. E isto, cuidando seriamente de mudarmos, com a força do Espírito, a qualidade da nossa vida espiritual, para, depois, podermos sonhar em alterar o que nos envolve. Creio que é uma quimera pensar que lograremos renovar, em chave evangélica, seja o que for sem que o nosso coração seja cruciforme e cristiforme.

Demos atenção à Criação, sirvamos os demais e falemos de tudo sem receio, mas sempre desde uma perspectiva decididamente cristã; caso contrário seremos apenas mais uma voz complacente e/ou temerosa no deserto. Não aquele deserto de areia, mas o deserto daquele sem-sentido fragmentador que tem marcado cada vez mais a nossa desorientada contemporaneidade. Se já não somos capazes de dar conta do diferente que é, e deve ser, o discurso cristão face às tendências mundanas, isso não se deve, com toda a certeza, a estas terem sido cristianizadas, mas, muito mais provavelmente, a nós mesmos já termos sido mundanizados, inclusive pelo clima de verdadeira supressão do humano que nos assola (algo que já impera em algumas confissões protestantes com as suas reduções da fé a um formalismo ético jesuánico – ou nem isso –).

Jamais devemos dar por adquirido nada disto naquilo que somos, dizemos e fazemos enquanto membros de uma Igreja que (com)prova Aquele que a edifica. Se, nestes tempos de crescentes “trevas” contaminada de contra-sensos, crermos que isso está seguro, jamais seremos centros de luz e de esperança para as gerações que, no futuro, poderão ter que viver “trevas” ainda mais densas. Vibrantes centros litúrgicos conviviais, compassivos, culturais e messianicamente apostólicos numa fraternidade cristã (enraizada, quer na comum vivência crente eucarística e bíblico-doutrinal, quer na união com os mais destituídos) chamada a alargar-se ao universal.