
Dante Alighieri (1265-1321), natural de Florença, homem público da sociedade de então, o que hoje chamaríamos político, ficou definitivamente na História da Cultura universal como poeta, pela sua obra A Divina Comédia, que constitui o universal digesto do universo cristão e de toda a cultura da Europa Medieval. Falecido em 1321, faz este ano (em 14 de setembro de 2021) 700 anos.
Por M. Correia Fernandes
O Papa Francisco quis recordar este aniversário, que certamente será especialmente lembrado nas suas cidades de Florença (local de nascimento) e de Ravena (local da sua morte, após ter sofrido várias perseguições), através de uma Carta Apostólica. Com esta iniciativa pretende o Papa dar à efeméride uma dimensão universalista, que reúna cristãos e não cristãos, crentes e não crentes, na busca dos valores humanistas e de espiritualidade de que o mundo de hoje tanto carece. A publicação surge simbolicamente com a data de 25 de março, dia em que Dante terá começado a escrever a Divina Comédia.
Já em 1965, na memória dos 700 anos do seu nascimento, Paulo VI lhe dedicara, sob forma tradicional de “motu próprio” (que quer dizer por iniciativa pessoal do Papa) a reflexão “Altissimi cantus” (Canto do altíssimo Dante), evidenciando a dimensão universal que o poeta granjeara ao longo dos séculos, também através da expressão da fé, que Paulo VI recorda na palavra do poeta ao afirmar “que como uma estrela no céu em mim cintila”, “esta clara alegria sobre a qual toda a virtude tem seu fundamento”, lembrando o sentido da “catarse e sopro religioso” que se exprime na Divina Comédia. Lembra que já Bento XV em 1921 assinalara os 600 anos do seu nascimento, tomando a sua iniciativa como um gesto de homenagem ao imortal poeta.
A Carta Apostólica do Papa Francisco intitula-se “Candor Lucis Aeternae” (O Esplendor da Luz Eterna), que recorda a festa da Anunciação, dia em que a Carta é assinada e em que “a Liturgia celebra este mistério inefável e é particularmente significativo também na vida histórica e literária do insigne poeta Dante Alighieri, profeta de esperança e testemunha da sede de infinito presente no coração do homem. Por isso, nesta ocorrência, desejo unir-me também eu ao coro numeroso de quantos querem honrar a sua memória no VII centenário da sua morte”.
Celebrações da efeméride
Gianfranco Ravasi, presidente do Conselho Pontifício da Cultura, anuncia o projeto de realização de um encontro de reflexão sobre a “Divina Comédia”, em preparação para junho, nas catacumbas, lembrando que “é um pouco como descer aos infernos», certamente a cominho do Paraíso.
O cardeal revela que «escritores e atores, crentes e não crentes» vão reler e interpretar a “Divina Comédia”, a obra mais célebre de Dante, que propõe um itinerário pós-morte pelo Inferno, Purgatório e Paraíso, «propondo uma atualização, também em chave provocatória, de personagens e de passos da obra, escolhidos pessoalmente». E revela alguns dos conteúdos do projeto: «Em cada estação, um ator recitará um breve monólogo» e propõe «uma reflexão sobre alguns pontos: como serão hoje o Inferno, o Purgatório e o Paraíso? Se Dante vivesse hoje, quais seriam os novos pecados capitais? O amor na “Divina Comédia”: amor carnal e divino. No fim será projetado um filme encontrado na Filmoteca do Vaticano, “O Inferno”, de 1911», afirmou ao periódico “Il Giornale”, divulgado pela Pastoral da Cultura, em que se anunciava a publicação em 25 de março de 2021 da Carta Apostólica.
Mas o sétimo centenário será também celebrado num Congresso internacional, centrado na dimensão teológica do além, a par de uma exposição digital sobre materiais e manuscritos organizada pela Biblioteca Apostólica do Vaticano, dirigida pelo cardeal Tolentino Mendonça, integrante da comissão que está a aprofundar a figura e obra de Dante na sua dimensão religiosa e cristã.
Lembrando a Divina Comédia
A obra “A Divina Comédia” existe em português numa tradução de Vasco Graça Moura (1942-2014), publicada por Quetzal em 2006, com desenhos de Júlio Pomar, citada no documento papal e pela qual recebeu um prémio do Governo italiano (juntamente com a tradução dos sonetos de Petrarca). Dispomos também de uma tradução de Marques Braga, editada em 2010 pela Livraria Sá da Costa. Disponível na internet encontra-se uma tradução de José Pedro Xavier Pinheiro, editada em S. Paulo (2003), nume versão para eBook o Brasil.
A associação dos conceitos “Divina Comédia” pode parecer estranha para o uso atual dos termos. Comédia no tempo e na tradição italiana significava genericamente uma construção com origem na literatura grega clássica, relacional, factual ou dramática, oposta à tragédia. Daí a associação a “Divina”.
No texto, Francisco lembra as palavras com que Paulo VI definia o espírito e o alcance da Divina Comédia: “Num momento histórico denso de tensões entre os povos, o Papa tinha a peito o ideal da paz e encontrava na obra do Poeta uma reflexão preciosa para a promover e suscitar: «Esta paz dos indivíduos, das famílias, das nações, da sociedade humana, paz interna e externa, paz individual e pública, tranquilidade da ordem, é perturbada e abalada, porque são espezinhadas a piedade e a justiça. E, para restaurar a ordem e a salvação, são chamadas a trabalhar em harmonia a fé e a razão, Beatriz e Virgílio, a Cruz e a Águia, a Igreja e o Império». Nesta linha, assim definia a obra poética na perspetiva da paz: «A Divina Comédia é poema da paz: lúgubre canto da paz perdida para sempre é o Inferno, suave canto da paz esperada é o Purgatório, epinício triunfal de paz eterna e plenamente possuída é o Paraíso».
A obra está dividida em três partes (Inferno, Purgatório, Paraíso). Cada uma das partes contém 33 cantos, excepto o Purgatório, composto por 34, todos em tercetos rimados, circulando entre as categorias da narrativa e da reflexão sobre personagens, factos, dados, acontecimentos, relacionamento humano, interpretação simbólica. Encontramos personagens entre o histórico (como o poeta grego Homero ou o latino Virgílio ou o tribuno romano Catão (que se suicida por amor à liberdade) e a figura inspiradora de Beatriz, um real amor perdido na vida do autor, que se transforma em musa inspiradora da vivência do amor. Outras figuras da história contemporânea de Dante são rememoradas na sua inspiração de vida e pensamento, como Francisco de Assis, Domingos de Gusmão ou Tomás de Aquino. Recorda igualmente e formula juízos sobre muitas figuras históricas e do pensamento do seu tempo e do passado. Todos os tercetos terminam por um verso solto, conclusivo e por vezes de carácter judicativo, como “as coisas que subindo via sempre mais belas” (Paraíso, canto XV), ou “valem mais exemplos que a palavra (Paraíso, canto XVII).
A obra está composta sob a forma de uma visão, um estilo usual na literatura medieval, mas como processo literário de observar a condição humana, os seus dramas, contradições e esperanças, percorrendo assim o sentido de toda a história humana. O valor profundamente simbólico de toda a construção tem sido motivo de numerosas interpretações por parte de outros grandes artistas, como William Blake (1757-1827, Salvador Dali (1904-1989) e Domenico di Michelino (1417-1491), pintor florentino autor de uma imagem que figura em muitas edições da obra, relacionando os três temas da obra (Inferno, Purgatório, Paraíso).
Lembram-se também entre as obras de Dante as “Rimas” (soneto e canções, canto do amor e louvor da sabedoria e da filosofia), e a ”Vita Nuova”, poemas de experiência sentimental e espiritual.
Lembramos que uma apresentação de textos de Dante foi já apresentada na Sé do Porto, pela Associação Dante Alighieri desta cidade, com música de Fernando Valente, e que a apresentação está prevista para Roma em junho.
Celebrar o sétimo centenário de Dante contribui para imprimir nos tempos de hoje a admiração por uma das maiores obras do espírito humano, e ajuda-nos a lembrar figuras universais como Homero, Virgílio, Shakespeare, Camões, Cervantes, Victor Hugo, Fernando Pessoa.