Contas incertas

Por Ernesto Campos

“A lei humana tem valor de lei enquanto é conforme com a reta razão”

S. Tomás de Aquino, séc. XVIII

O senso comum nem sempre coincide com o senso jurídico e muito menos com o senso político. Quando, ao que se diz, duas em cada três famílias sofrem privações por causa da pandemia, o imperativo é apoiar economicamente quem perdeu,todos os proventos de que dispunha para viver. Importa atender às pessoas. Nem é preciso recorrer à lei civil (ou será, até, necessário ignorá-la), porque se sobrepõe à lei natural. Prevalece o óbvio senso comum.

A lei natural é assim chamada porque a reta razão que a promulga insere-se na própria natureza humana. É ela que nos interpela no íntimo da consciência: que fizeste do teu irmão? Infusa no coração do homem, universal, ilumina-nos a inteligência, ditando o que se deve fazer e o que se deve evitar: é a moral que está explicitada nos dez mandamentos.

A polémica sobre os apoios sociais que a Assembleia da República traduziu em lei escrita surgiu porque os legistas do senso jurídico e os contabilistas do senso político opõem-lhes a norma constitucional que impede o aumento da despesa orçamentada. Clama-se: dura lex sed lex, que os romanos inventaram, porque a lei tem de ser cumprida para proteger os homens dos seus egoísmos e se não é imperativa, subverte a ordem da vida coletiva. É uma exigência do progresso e da civilização.

Dividem-se, então, as opiniões. Por um lado, o parlamento, a opinião pública politicamente descomprometida, o senso comum e a exigência de auxiliar economicamente de modo substantivo quem mais precisa, contornando, mesmo, o condicionamento constitucional; por outro lado, a intocável Constituição, que se pretende fazer prevalecer para limitar o défice e acertar as contas. Convenhamos: ao estado de emergência opõe-se o estado de exceção que se vive aquém e além da norma constitucional; o que justifica procedimentos excecionais. Como diria a sabedoria popular, para grandes males, grandes remédios.

O Presidente da República justifica a promulgação dos diplomas parlamentares com um subtil argumento: não está quantificado o que se vai gastar ao todo nestes apoios; portanto, não se sabe se tal despesa ultrapassa a orçamentada; logo, não está provado que tais diplomas sejam lesivos da Constituição. Aí temos um raciocínio de reta razão em modo quase-silogístico, irrespondível.

Mais determinante, porém, é que estão em causa direitos humanos. É uma exigência do bem comum impor aos poderes do Estado, nomeadamente em situação de exceção, a “prestação de serviços essenciais às pessoas, alguns dos quais são, ao mesmo tempo, direitos humanos: alimentação, habitação, trabalho, educação, saúde…” (Gaudium et Spes). A autoridade política deve, pois, guiar-se pela lei moral que é, ao mesmo tempo, fundamento indispensável para elaborar a lei civil e razão de ser da dignidade do próprio Estado quando a sua atividade se integra na ordem moral, a prossecução do bem comum.

Em última análise, ao fazer-se prevalecer a ordem moral e a lógica do senso comum neste diferendo entre o parlamento e a própria Constituição, avança-se para um outro plano ético. À voz da consciência e à dura lex, a revolução cristã junta uma nova fórmula: o sábado é para o homem e não o homem para o sábado.