Um teólogo (des)embrulhado na (p)an(d)emia (14)

Foto: João Lopes Cardoso

Uma das muitas coisas que tenho aprendido com os meus alunos, mormente em provas orais, é o lema “duvidar; ciciar”. Às vezes isso funciona: na incerteza, opte-se pelo sussurrar, dado que o nosso colocutor, ouvindo apenas sons e numa espécie de Rorschach auditivo, pode pensar que estamos a dizer o que ele anseia escutar.

Por Alexandre Freire Duarte

Tenho vindo a duvidar da utilidade de abordar frontalmente o que me motiva a escrever estas palavras, tendo usualmente sido oblíquo, esperando e confiando que me entenderão. Mas creio que, com esta nova “reabertura”, é oportuno ser mais directo e assertivo. Não direi nada de novo face ao que já referi nesta rubrica, mas quer neste texto, quer nos próximos, serei mais explícito.

Estimo não haver alguma forma fecunda de, como cristãos, olharmos para esta pandemia – as suas causas, o como a vivermos (inclusive diante da morte biológica) e o tentarmos evitar outras – senão desde uma abordagem espiritual. Isto implica que cada pessoa que o intente realizar, saiba que é essencial andar a “passo de amor”. Só assim é que nada do que ela fizer irá remeter para um qualquer ídolo, em vez de fomentar, em si e nos demais, uma vida de liberdade íntima. Aquela vida que surge da ligação córdica a um Jesus pascal que permite que tal liberdade seja, não um estar isento de limitações, mas um querer fazer o que nos indica o amor autêntico.

Com efeito, tudo nos três aspectos mencionados no parágrafo anterior, toca uma matriz baseada na (in)existência de uma salutar relação espiritual, mormente comunitária e litúrgico-sacramental, com Deus-Amor. Uma relação de hálito sanante a hálito sanável, numa recusa frontal de crer, e fazer crer, que a “espiritualidade” é um converter em poesia a teologia, num intento de fuga de uma racionalidade que lhe é tão distintiva quanto necessária. O resto virá por acréscimo à atenção dada a tal relação, sendo que esse mesmo “resto” deverá convergir na própria espiritualidade (esse hino actual ao que será a vida de todos nós em Deus-Amor).

De facto, a pior pandemia que nos aflige, não é a deste, tristemente célebre, coronavírus, mas a daquele desamor muito mais desconhecido nos nossos dias. Um desamor que, sendo decorrente de um projecto inútil de auto-suficiência parasitária do infinito, acaba por ser sinónimo de uma rejeição da abertura ao amor; de uma recusa de atingirmos a nossa alegria e grandeza em Cristo e no serviço aos demais. Ou seja: a epidemia basilar, a que devemos dar prioritariamente a nossa atenção, é a daquele radicalmente metafísico pecado resultante de uma existência egoísta.

Na verdade, essa existência, na qual nos colamos aos nossos instintos, distorce a nossa vida espiritual ao desordenar as nossas faculdades espirituais, dirigindo o caudal salubre daquilo que nos pode tornar melhores no amor, para um lago insalubre, que apenas nos faz piores. Eis-nos submergidos, desse modo, em toda aquela panóplia de contra-valores que, tantas vezes e de quase todos os quadrantes, nos têm oprimido desde que se passou a exaltar: o naturalismo relativista; o humanismo anti-teísta; o cientismo cego; o tecnicismo pretencioso e, entre outras realidades, o racionalismo céptico que se quer ver isento dos requisitos da própria razão.

Por sua vez, a aduzida distorção perverte, não só a nossa comunhão com Deus – passando cada um de nós a não O amar e conhecer tão bem como seria possível –, mas também a nossa relação, de desejado cuidado bondoso, com os demais e o remanescente de uma Criação que está a ser criada num clima de amor nupcial. Esse restante passa, com efeito, a ser por nós encarado desde uma óptica materialista e consumista, focada numa busca egocêntrica do prazer (o qual, porém e fora desse âmbito, é tão santo quão possivelmente santificante). Fruto disto, essa mesma Criação, em que nos inserimos umbilicalmente, fica ferida e, involuntariamente, acaba por nos lacerar ainda mais.