
Por M. Correia Fernandes
O Bispo de Lamego, D. António Couto, acaba de publicar na Paulus Editora um volume de 150 páginas com o título inspirado no profeta Jeremias, lembrando os tempos do cativeiro: Do lado de cá da meia noite, e o subtítulo “Atravessar a crise”. No dizer do autor, “reúne seis ensaios significativos para ajudar a viver com esperança, e com esperança superar a crise pandémica que atravessamos”. Como bem explica, as principais fontes são bíblicas (naturalmente, como diz), mas em diálogo com o pensamento e a cultura.
É conhecido o estilo pessoal do autor: segue os textos bíblicos, cujo sentido busca e procura traduzir, recorrendo aos próprios termos nos textos originais (hebraico e grego) e alargando o seu sentido às realidades da vida atual: os conceitos bíblicos fundamentais e os seus sentidos originais são depois expressos na tradução atual, mas sempre fundados no seu sentido etimológico e em outras possibilidades de tradução mais adequada.
É este um processo original de revelar o alcance mais profundo da linguagem e dos acontecimentos bíblicos, por exemplo as noções de fracasso e de esperança: “A simultaneidade do fracasso e da esperança, que vimos da parte de Deus, encontra-se também da parte do homem, assinalada também pela concentração numa só palavra, a palavra ‘azab, que significa ao mesmo tempo a ação de abandonar e a ação de recolher. Não há mudança de estação entre a ação de lançar a semente à terra e a ação de recolher o trigo. Os dois momentos e os dois movimentos são simultâneos”.
Transcrevemos esta passagem como exemplificação do processo usado pelo autor para traduzir o sentido bíblico na realidade e interpretação do tempo presente. E a imagem do ramo de amendoeira, símbolo que busca em Jeremias da esperança no meio da desolação, que é “uma toalha branca estendida pelo chão”, ou o “vendaval manso de graça e de perdão”. Lembramos que a expressão “Vejo um ramo de amendoeira” foi a escolhida como lema da sua ordenação episcopal.
São seis os “ensaios, como lhes chama, que constituem o livro. Começam pela figura de Jeremias, na esperança que estejamos “Do lado de cá da meia-noite”; o segundo ensaio é a presença “da surpresa e da novidade, não de uma ideia, mas de um rosto”; o terceiro ensaio mergulha nas águas fundamentais da “Fé, Amor e Esperança”, temáticas antigas e sempre renovadas. O quarto ensaio parte de situações bíblicas, resultantes da relação entre Deus e o seu povo: o Êxodo; o quinto é diretamente atual: parte da situação da crise para lembrar a dinâmica de “aprender com a Bíblia”. O sexto ensaio intitula-se “Leitura meditada das narrativas da Ressurreição”, pondo-nos diante do grande universo salvador de Jesus. Aqui são analisadas três figuras: Madalena, Pedro e Tomé, e a manifestação posterior narrada por João, com a mensagem a Pedro: “apascenta as minhas ovelhas”.
Poderá agir como resumo da proposta desta obra, fundada, alicerçada na Escritura, nos seus múltiplos significados, que o autor explicita, a conclusão do capítulo 5.º, ao propor uma vivência da Fé em tempo de crise: “Educar para a fé é, deve tornar-se, não a de pertença a um grupo (“a lógica identitária é sempre totalitária”, afirma) mas antes a dinâmica de levar a pessoa a abrir-se ao outro, ao diferente de si”. Passa por aqui o Evangelho, a fé, a verdadeira cultura e educação. E conclui: “Nasce assim um novo tipo de pessoa… aberto e voltado para fora, para o outro, que é a sua nova referência (eu-para-o-outro). Neste sentido, educação e evangelização não se opõem, mas podem sobrepor-se, sendo então a educação a incarnação da evangelização”.
Valorize-se, pois, a originalidade e a pertinência destes “ensaios”, que constituem um esforço de leitura de quem olha o mundo e a história pessoal e humana “do lado de cá da meia noite”, mas também do lado de lá da palavra bíblica interpretada e inspiradora.