
Temos de celebrar a Páscoa este ano sem as costumadas manifestações públicas de júbilo e de comunhão fraterna. É um contributo para conter a propagação da doença pandémica que tem atingido o mundo, vai para dois anos. Isso não é impedimento para que seja frutuosa. Sendo mais sofrida e mais contida pode ser mesmo mais intensamente vivida.
Por Jorge Teixeira da Cunha
Sendo a inauguração e a culminação de toda a realidade, a Páscoa só pode ser sofrida, pois o sentir é o modo primeiro de acesso à vida e à realidade. Jesus Cristo foi quem primeiro viveu desse modo e é nele que todos os viventes vivem. O sofrer não é apenas um sentimento negativo, mas é uma condição do viver, que coincide com a alegria e o júbilo. Esta descrição da vida de Cristo e da vida dos seres humanos decorre de uma teologia do mistério pascal que começou a ser praticada recentemente. Nem sempre foi assim. Por muito tempo, a teologia insistiu no aspecto redentor da morte de Cristo que foi causada pelos nossos pecados. Isso não está errado, mas é uma insistência unilateral. O mistério pascal de Jesus é, antes de mais, a entrada de Jesus na plenitude divina e na plenitude humana.
A incarnação de Deus chega à sua consumação quando Jesus testemunha, quando morre nas mãos de Deus, quando se faz ver, ressuscitado, pelos crentes. Esse modo de viver e de morrer conheceu a oposição do mundo e do mal e, por isso, a sua morte foi o cúmulo da crueldade e da injúria. Mas a Páscoa é a plenitude da vida de Jesus e a origem de toda a realidade. É nela que Deus origina e plenifica a sua criação. De facto, o mistério pascal de Jesus não apenas é a redenção, mas é também a criação. Estas perspectivas necessitam de um longo desenvolvimento, mas elas estão patentes nos textos fundadores da nossa fé. A partir delas, podemos dizer que que a Páscoa é o ponto final e o ponto inaugural da acção criadora. Por isso, tem uma repercussão cósmica evidente. É neste sentido que a Páscoa é uma realidade sofrida e que se comunica aos crentes pelo sofrimento.
Por isso, celebrar a Páscoa é muito mais do que fazer memória de acontecimentos que tiveram lugar no passado. Celebrar a Páscoa é aceitar deixar-se envolver pela presença ressuscitada de Jesus, como quem entra na fonte da vida e, sofrendo e alegrando-se, crescer em individualidade, em liberdade e em comunhão fraterna.
A Páscoa é, pois, uma memória que diz respeito a toda a realidade e a toda a humanidade. Anunciá-la e celebrá-la é um dever da Igreja. Não o faz apenas como uma memória da sua origem, mas da origem de tudo. É uma responsabilidade que lembra aos crentes cristãos o seu papel mais do que confessional. Celebram a Páscoa como quem inova a criação divina e lhe dá o ser o que é: acção divina adjacente à geração do Filho de Deus e seu prolongamento. Se bem entendemos as coisas, é por esta razão que o Papa Francisco abre a Igreja ao diálogo inter-religioso com o Islão, sem receio de perder a identidade cristã. A Igreja adquire a sua identidade quando dá lugar a Deus e à sua acção e não quando reivindica a sua distinção relativa às outras formas de adoração de Deus. A Páscoa de Jesus origina a comunidade messiânica daqueles que dão a Deus o seu assentimento orante e, desse modo, se inscrevem na grande corrente da vida que os dá si mesmo como seres livres e libertados.
No tempo de incerteza que estamos a viver, tempo de luta da vida contra os seus agressores, ocorre celebrar a Páscoa com uma intensidade renovada. A Igreja interioriza o seu ministério quando o aprofunda até à sua raiz. Essa interiorização é muito urgente. Num contexto em que a sociedade parece apenas identificar a Igreja quando denuncia as suas elites que supostamente militam por controlar a política, a finança e os negócios (papel de que foi acusado injustamente o instituto Opus Dei), a Igreja tem de mostrar que se situa nas fontes da vida e, partir daí, serve desinteressadamente a comunidade no tempo de dor que estamos a viver.