Um teólogo (des)embrulhado na (p)an(d)emia (13)

Foto: João Lopes Cardoso

Por Alexandre Freire Duarte

Não é raro perguntarem-me o motivo de (tentar) fazer humor com quase tudo em que me envolvo. Geralmente digo que “a vida é demasiado séria para ser levada apenas a sério”. Todavia, devo admitir que estas palavras, embora verazes, também são uma evasão mais ou menos airosa, pois não é fácil dizer, no meio de uma conversa, que C = AmHd × AlHr. Ou seja: que ser Cristão (C) é o amor (Am) elevado à humildade (Hd) a multiplicar pela alegria (Al) elevada ao humor (Hr).

Quem disse que a matemática – que «pode mostrar que se ninguém tem a sua, é insensato alguém querer ter a sua própria moral» conforme se lê nos “Cadernos” de Péguy [cf. Sal. 90,12] – não pode descrever o que de mais relevante existe na vida? E será que estarei errado ao pensar que tal equação é a que Deus-Amor imaginou para, declarando a Sua vida mais íntima (vertida na de Jesus), pautar a Sua acção criadora, redentora e plenificadora (cf. Rm. 11,36)?

Mesmo que esteja iludido a esse respeito, talvez devamos reflectir sobre o seguinte: se nada na vida cristã é para mero benefício próprio (cf. Flp. 2,3s), também a morte biológica, que tanto nos tem impactado nos últimos meses, não o deve ser (cf. Rm. 5,8). Ela deve ser uma ocasião para, com os dons que Deus nos dá aquando da proximidade dela (e até na sua paradoxal vivência), cuidarmos da Igreja e, por esta, do resto da humanidade. Eis algo que quiçá seja uma sublime afirmação da mais substancial “comunhão dos santos” (cf. 1Jo. 1,3.7).

Porém, para que isto assim seja, essa morte biológica precisa de ser acolhida e vivida (mas nunca buscada) de um modo amoroso e humildemente livre (cf. Jo. 10,18). Só assim ela será um rosto de vida espiritual capacitante e não de morte espiritual alienante. Isto supõe, não tanto, e por mais que isso seja essencial, o aprendermos a morrer biologicamente com a mesma simplicidade com que dormimos (cf. Jo. 11,11), mas, especialmente, o aprendermos a deixar que o Senhor dê morte, diariamente e connosco, ao que, em nós, nos está a causar morte espiritual (cf. 1Jo. 3,8): «dá-me, Senhor – disse Anne Lejeune –, uma lasca da Tua Cruz, / que lacere a minha avidez» (“O sussurro da dor”).

Não será fácil, nem rápido, chegarmos a assumir esta realidade, mas se algo há que nos ajudaria imenso, seria o termos um bom sentido de humor e uma não menor alegria espiritual. Estas duas qualidades espirituais, tão presentes na Bíblia (se bem que usualmente não as vejamos), não anularão nem a dor, nem a preocupação face à morte biológica, mas poderão ser um bálsamo ímpar para as vivermos. E sê-lo-ão, sobretudo porque há poucas realidades que, juntamente com o amor e a humildade (que com elas entram na antes apontada equação), nos façam dar atenção aos quatro elementos que melhor entretecem a percepção do sentido da vida: a segurança; o emaravilhamento; a verdade e a afeição (cf. Sal. 4,9; Lc. 5,26; Jo. 8,32; Rm. 12,10).

Estes elementos, supremamente presentes numa comunidade eclesial crente que é toda ela um sacramento íntimo que se ajoelha diante da dignidade infinita de cada ser humano, poderiam mesmo servir de pauta para uma crescentemente necessária vida crente contra-cultural (mas não anti-cultural). E isto, face ao panorama da, em diversos aspectos, cada vez mais desumana “cultura” comum coeva, que na inquisitorial “cultura do cancelar” (da qual o Cristianismo é vítima há séculos, embora antigamente à mão de pessoas mais talentosas) tem apenas uma das suas manifestações.

Tal pauta pode mesmo guiar-nos num contínuo orientar os nossos critérios pelos critérios cruciformes da vida do Senhor, no que, face à nomeada cultura geral actual, nos libertará: da sedução da ambição; do conforto absorto; da inércia ego-referente; e, mormente, do medo de dialogarmos, debatermos e convencermos (cf. At. 18,4) outros acerca de Jesus mais do que de qualquer outra coisa (do futebol à meteorologia).