É curioso o Evangelho de Marcos que nos acompanha ao longo deste ano litúrgico: não fala na infância de Jesus e, abruptamente, começa com a pregação de João Batista, a tal voz que “grita no deserto”.
Da mente do povo bíblico, de facto, nunca desapareceu a recordação do deserto. Foi lá que se experimentou a ação libertadora de Deus, a fidelidade e a rejeição dos seus preceitos, o chamamento à conversão e a queda, o recomeço e o cansaço, o recolhimento interior e o convívio da diversidade que fez de muitos um só povo. Por isso, não admira que a gente acorra ao deserto para ouvir João, Jesus inicie o seu ministério depois de um retiro de quarenta dias no deserto, Paulo se aparte para lá após a conversão e antes do apostolado e tenha sido para o deserto que se retiraram os primeiros anacoretas e monges.
Herdeiros de tudo isto, os cristãos tomaram o deserto como símbolo de intimidade ou familiaridade com Deus. Os melhores crentes aprenderam nele que o específico da nossa fé não é um código de leis ou de exigências implacáveis, um cumprimento tristonho de regras, um peso que se tenha de suportar. Pelo contrário, é um “caminho novo e vivo” (Hb 10, 20), uma direção a tomar, uma vontade de chegar.
Ora, todo o caminho supõe uma diversidade existencial. Por vezes, é percorrido com euforia e grande ânimo; outras, com interrogações e quedas. Não obstante, nenhum caminho é cama para descansar: exige ser percorrido.
Estes dias chamam-nos a atenção a vários caminhos: o penitencial da quaresma, o silencioso de São José, o humano do Verbo de Deus, o cooperante de Maria de Nazaré e o sempre diverso de tantas famílias: daquelas para quem o amor sela a união indissolúvel e das outras em que o adormecimento deixou cair das mãos o “vaso de barro” e este se fragmentou irremediavelmente. É por isto e nisto que iniciamos um ano dedicado à família, à base do documento do Papa “A alegria do amor”.
Na família, como nas outras realidades da vida, importa regressar ao deserto. Para experimentar o que sentiram os judeus: revoltas, quedas, mau humor, mas também libertação, conversão, interioridade, convivência, diversidade, unidade. E, fundamentalmente, familiaridade com Deus. Até porque creio muito válida a afirmação de Simone Weil: “Onde falta o desejo de se encontrar com Deus, aí não há crentes, mas pobres caricaturas que se dirigem a Deus por medo ou interesse”.
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