Da bazuca à vitamina e outros estranhos caminhos

Por M. Correia Fernandes

1.Desconhece-se o motivo que levou a Comissão Europeia a utilizar este inesperado termo “Bazuca” para significar o programa, ou Fundo de recuperação, de apoio às economias dos países da União para obviar às perdas resultantes da paralisação de múltiplas atividades  da comunidade produtiva provocada pela estagnação económica (que muitas vezes é pântano) resultante da pandemia que assolou os países europeus.

Para melhor esclarecimento dos nossos leitores mais propensos à sapiência em conceitos económicos e menos solícitos em conhecimentos de índole militar e estratégica, recolhemos mais esta importante informação: “É uma arma individual pertencente ao grupo dos engenhos que utilizam para a propulsão dos projéteis o processo balístico do sistema foguete. A B. tem um grande poder de destruição até uma distância variável da ordem da centena de metros” (Encicl. Luso-Brasileira  de Cultura)

Vejamos então: a bazuca serve para disparar: eis aqui um verbo muito utilizado agora na comunicação social, em que disparam os preços, disparam os custos e outras realidades da nossa condição. Aprendemos também que é uma arma individual. Perguntamo-nos qual é o indivíduo, ou os indivíduos que dela podem fazer uso, e com que finalidades ou intenções.

A continuação da leitura lembra-nos que utiliza o processo balístico do sistema foguete. Não ficamos a saber se este é o melhor sistema de propulsão, ou se haverá outros mais modernos. Ficamos no entanto devidamente esclarecidos que possui grande poder de destruição. Ficamos com pena de que esse poder só possua eficácia apara uma centena de metros, em que se escapa um universo de realidades bem conhecidas no nosso tecido social. Destruição por destruição, seria desejável, para toda a União Europeia, que chegasse ao menos ao quilómetro.

Como a coisa vai significar a disponibilização, aprovada pelo Parlamento, de muitos milhares de milhões de euros (diz-se que para Portugal virão cerca de 45 mil milhões) logo surgem os interesses, os beneficiários, as entidades que os irão receber, que os irão administrar e as que os irão fiscalizar. Só para esta tarefa, tida conta das forças políticas que reclamam a fiscalização, já será exigida uma boa maquia. E aqui funcionará também o “poder de destruição”. Mais dramática é a declaração do Presidente da Câmara do Porto, ao afirmar que “As verbas da ‘bazuca’ vão servir para manter o Estado incompetente” (JN, 14 de março 2021). Não sabemos se o conceito de “Estado” engloba também as Autarquias, os Tribunais, os Partidos, ou simplesmente o Estado central (Governo, Ministérios ou Assembleia da República).

O que nos causa maior preocupação é que se tenha começado a usar o termo, que deve ter surgido à mente iluminada de um qualquer conselheiro da senhora Leyen, e que ninguém mais pensou na profusão de sentidos obnóxios que o termo traduzia: ninguém se lembrou mais nem do sentido de disparar, nem do grau de destruição, nem do alcance do projétil, nem do processo balístico que encerra.

Mas é estranho que ao ser adotado com carácter universal este termo, não se tenha pensado no seu sentido e na sua não adequação para traduzir o que pretende traduzir. Vemos ainda que esta imagem bélica, de destruição, traduz o inverso daquilo que parece pretender significar: tornar um instrumento de recuperação económica, social, cultural e humana das populações dos países da Europa para quem se encontra orientada.

Recentemente já se pode ouvir pessoas mais lúcidas que pretendem transformar a bazuca em vitamina, que no seu sentido acomodatício encontra dezenas de significados e projeções. Mal por mal, antes assim. Mas parece que a ideia não pega. Na nossa sociedade mediática, vocábulos que não entrem pelo caminho da agressividade não possuem grande força de atração para gozarem de fortuna linguística em semântica.

 

2.Leitores sensatos de alguns diários pronunciaram-se contra o facto de a canção que venceu (cá está outro conceito usual de violência encriptada) ter siso cantada em inglês, e ao que parece não por escolha do júri, mas do público. É um jeito da nossa atualidade: todo o cantar inglês, arranhar inglês é nota de bom tom, de boa figura.

Dei comigo a pensar num dado imperceptível: que a Inglaterra deixou de ser, por vontade própria, membro da União Europeia. No entanto continuamos a ouvir os discursos e as declarações em inglês. Sabemos que o inglês se tornou idioma universal mais pela influência dos Estados Unidos que da Inglaterra, com todo o respeito por ser esta a sua pátria original.

Mas parece que o badalado Brexit pode tornar-se um bom pretexto para passar a valorizar as outras línguas da União, a sua tradição e as suas culturas, como o francês, que em longas décadas era o idioma predominante como língua estrangeira nas nossas escolas e pátria dos autores mais estudados entre nós. Importa também lembrar o alemão, que é a língua de maior número de falantes na União Europeia, e o espanhol, que é a segunda língua mais falada no mundo, e o italiano, que na sua musicalidade e vivacidade suporta não apenas a língua dos discursos papais, mas recorda a expressividade das óperas universais de Verdi ou Rossini.

Parece assim algo estranho que ouçamos no Parlamento Europeu os distintos deputados de fala francesa, e de outros idiomas europeus a esforçaram-se pela expressão em inglês, para prestarem homenagem à Inglaterra que os abandonou ou aos Estados Unidos que querem mandar no mundo, avançando até ao Próximo Oriente. Já não digo o português, por ser língua da periferia da Europa e por isso descartável, embora apareça como a oitava ou nona mais falada no mundo. É importante ter em conta que o inglês, sendo muito usado como segunda língua, é apenas a terceira língua nativa mais falada. Por isso esta mistificação, ou mitificação do inglês deve ser posta em causa pela União Europeia.

Assim poderíamos eixar de escrever “Green Deal” para falar do pacto ecológico ou Acordo verde europeu em ordem à diminuição do efeito estufa na atmosfera. Ou de continuarmos a falar da “Task Force”, para traduzir um conceito tão tradicional como “Grupo de Trabalho”, longamente presente na língua de Camões. Ou “Groupe de travail” ou “Equipe spéciale” em francês ou “grupo de trabajo” ou “grupo operativo” em espanhol, ou “unità operativa” em italiano, ou “Arbeitsgruppe“ em alemão.

Era uma maneira de nos libertarmos da “força da tasca” que sempre nos cai em cima, por muito que tasca seja uma realidade bem nacional…