Um teólogo (des)embrulhado na (p)an(d)emia (12)

Foto: João Lopes Cardoso

Por Alexandre Freire Duarte

Todos já sentimos, certamente, o impacto da decepção. No meu caso, uma das coisas que me fazem sentir isso, é a de, quando tenho que acender o fogo no forno familiar a lenha, recordar-me dos avisos da Protecção Civil de que basta um só fósforo para destruir uma floresta, e eu precisar, para realizar tal tarefa, quase sempre de uma caixa deles.

Fogo. Recordemos que Deus-Amor é um «fogo devorador» (Hb. 12,29) que, tendo-Se feito Homem, ateou este Mundo ao enviar as chamas do Espírito Santo (cf. At. 2,3) sobre uma Igreja que está orientada à «nova criatura em Cristo» (2Cor. 5,17). E enviou-as, na mesma moção pela qual Se velava de tal Mundo para por ele velar melhor do que nunca. Se assim é, vemos que amar é a humildade inflamada para promover a quem se ama. “Humildade inflamada”, sim, mas não no sentido de uma maleita que a assista, antes de uma ardente intensidade.

Neste sentido, só posso alegrar-me por fazer parte de uma Igreja que, graças a um contágio comunitário salutar, está repleta desse fogo santificante numa vida de recusa do síndrome de Lady Macbeth. Isto é, numa vida de rejeição de querer descobrir a serenidade em si própria. Deveras, a Igreja sabe bem que só encontrará tal dom ao fazer-se serviço a quem ainda não faz corpo com ela, para, assim e também pela posterior comunicação dessa mesma dádiva, ser constructora da «cidade da harmonia» (Sal. 121,3).

Não estimo que a presença, hoje, de tal fogo na Igreja em Portugal só decorra das próximas JMJ, as quais, mesmo na travessia desta fremente pandemia, já estão a mover tantos jovens ao redor de tão vibrante e fecundo projecto evangelizador. Não: esse fogo, mesmo na sua aparente invisibilidade (que apenas o torna ainda mais real), é insondavelmente mais profundo e incontidamente mais amplo do que esse acontecimento. Tão imenso, pois, como «o mar esvoaçante sem fundo nem beira» de que falou Adam Mitchum em “Adágio ao abismo”.

Com efeito, tal fogo, enquanto promovido por uma santa e cruciforme pastoral eclesial cada vez mais centrífuga, decorre da vivência, intencional e consciente, do facto de que Jesus não Se faz presente senão onde Se faz total e plenamente presente. Face a isto, e apesar de haver quem só veja (e queira) a Igreja em crise, nada está perdido: um mundo novo está a nascer cada vez que cada cristão, numa Igreja que sabe que antes de haver comunidade é preciso haver conectividade, liberta o homem para ser Homem. Ou seja: cada vez que nós, baptizados, mergulhamos no centro do coração das carências reais dos demais.

Claro que isto requer que lhes atestemos que só poderão aceder à veracidade e felicidade pessoal nas mesmíssimas ocasiões em que Deus, por entre os destroços daquele desamor que poderá estar a dominá-los, lograr ressuscitar nas suas vidas. Requer, portanto e tal como nos tem obrigado a fazer este emergente pesadelo sanitário que nos veio fustigar e comover, que sejamos um espaço para a vida dos demais, dando, num sentido tão material quão espiritual, ar aos aflitos, alento aos agonizantes e fôlego aos feridos. E fazermos isso para, segundo o poema “A religião cristã” de Lou Bernard, «a dignidade do Criador / ser a dos Seus amores».

Não é isto, inclusive, sinónimo daquela Missa da qual tantos nós sentimos uma enorme falta? Uma Missa em que nos fazemos corpo – escondido, sagrado, místico, visível e comunitário – de Cristo. Uma missa que, ao ser presença memorial e antecipadora, também significa e realiza o que nós fomos, somos e, sobretudo, o que estamos chamados a ser. A saber: uma Igreja que, em estado de renúncia de si para poder ser uma Presença em Pessoa, dá à luz a si mesma em quem (re)nasce no Baptismo. Deveras, a Igreja, enquanto hospital de Cristo, não se preocupa com riqueza, poder ou prestígio, mas em capacitar que o sobre-eminente dom do fogo do amor divino se enraíze em todo aquele que dele ainda não é ciente.