Parece uma contradição falar de alegria em tempo de quaresma. Para mais, uma quaresma assolada pela pandemia. Não obstante, em circunstâncias destas, podemos invocar um outro paradoxo: também Pilatos entrou no Credo…
Ninguém se admire. Na austeridade do advento, a Igreja colocou o Domingo gaudete ou Domingo da alegria. E o mesmo faz em pleno contexto penitencial da quaresma: o IV Domingo é designado por Laetare ou da alegria. Nele, ou se ouve o brado de S. Paulo –“Alegrai-vos sempre no Senhor. De novo vos digo: alegrai-vos!” (Fl 4, 4)- ou a antífona de entrada manda Jerusalém alegrar-se (Is 66, 10) e a oração coleta pede a Deus que o seu povo caminhe “alegremente” em direção às solenidades pascais. Porquê?
A palavra alegria provém da latina alacer-alacris, que se relaciona com a ideia de leveza, libertação de pesos que oprimem, subida. Remete, portanto, para a destruição daquele lixo acumulado que pesa no nosso interior mais do que chumbo. Alerta para a não cedência às prisões que construímos para nós próprios a nível dos ódios e rancores, das invejas e maledicências, das imprudências e vícios. E lembra-nos a opressão que fazemos a nós mesmos ao encerrarmo-nos no casulo do egoísmo e materialismo.
É que a alegria implica qualquer coisa de interior, de espiritual. De espírito… livre e limpo. Mas como se faz essa higienização? A tradição da Igreja diz-nos: mediante o Sacramento da Penitência ou Confissão. Esta é uma espécie de aspirador de última geração que arranca a sujidade dos sítios mais recônditos e «dá asas» para que nos possamos elevar. Desinfeta e faz cheirar a limpo. Gera alacridade. Por isso, muitos a designam como Sacramento da Alegria.
Então, não confiemos ao exterior a condição da alegria interior. Em 1986, a União Europeia aprovou como seu hino oficial o Hino à alegria, supremo andamento de um compositor –Beethoven- quase completamente surdo, sobre um poema de Schiller, escrito precisamente na época das suas maiores dificuldades financeiras e de saúde. Sinal de que a alegria depende mais de requisitos íntimos do que de estímulos que venham de fora. Depende bem mais da graça de Deus e da sua misericórdia do que das quantidades de álcool e drogas sorvidas.
Parafraseando o Papa Francisco, não deixemos que nos roubem a alegria. Fundamentalmente, não sejamos nós a roubá-la a nós mesmos, desprezando a graça da conversão.
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