Por Alexandre Freire Duarte
Não sei o que é que Feuerbach sentiria se tivesse sabido que, nos dias de hoje, se estaria, e na linha do seu próprio esforço, a tentar reduzir a Teologia a uma mera Antropologia (às vezes parcial e até pagã). Redução esta que inverterá, fatalmente, a asserção de que “Deus é Amor”, acabando-se, na melhor das hipóteses (mas que ainda é danosa), por se dizer, como aquele fez, que o “amor é deus”.
A diferença entre as duas expressões antes colocadas entre aspas é deveras abismal. Estamos a ver isto justamente na capacidade de termos, ou não, algo de substancial e claro a dizer (cf. Mt. 5,37) acerca da actual pandemia e dos seus efeitos mais ou menos impiedosos, mormente a morte biológica que tem chegado até tantos dos nossos queridos. Uma morte que tem conduzido, inclusive a nós cristãos, a esquecermo-nos de revelar, por tudo o que somos e fazemos, o que John Donne disse num dos seus poemas: «Morte, não te orgulhes, pois, embora alguns te digam / Poderosa e terrível, tu não o és» (“Soneto santo XIV”).
Desde a moldura do endeusamento do amor (cf. Flp. 3,19), acabar-se-á somente por estar preocupado com o se querer saber, numa curiosidade quiçá enferma, se existe ou não uma vida depois de tal morte. Já a partir da moldura bíblica e o seu ímpar «Deus é Amor» (1Jo. 4.8), reconhecer-se-á que tal vida é rigorosamente certa. Eis algo que nos liberta para podermos dar atenção ao que realmente é primordial: sabermos se, por um segundo nascimento para o amor proporcionado pela vivência eclesial do Espírito Santo (cf. Jo. 3,5), lograremos estar animosamente vivos antes dessa incubada morte.
Quem, como nós cristãos, vive numa relação comunitária com o Deus-Amor, não está interessado em ter uma outra e nova vida depois da referida morte. Está, sim, empenhado em deixar germinar, já nesta vida presente e pelo acolher do amor do Deus-Amor e o viver a amar sempre em benefício dos demais (cf. Flp. 2,3s), a Vida nova e plena que se estenderá para além da morte biológica. Quer dizer: está empenhado em cuidar da Vida de Cristo no seu coração (cf. Flp. 1,21), pois a vida eterna é sempre a Vida d’Aquele a ser por Si confiada, no nosso quotidiano e numa sublime fé e uma maior esperança Suas, a cada um de nós.
Na verdade, enquanto não nos fizermos sujeitos, pelas nossas decisões crísticas tomadas «a dois corações com o Espírito Santo» no dizer de Diádoco de Fótica, permaneceremos reduzidos a simples objectos. Enquanto não rompermos, acolhendo a Vida do Senhor da Vida, as amarras dos instintos biológicos (cf. Jd. 19), não seremos pessoas. Seremos, sim, meros indivíduos, em que cada esforço nosso será um contínuo resvalar, num vórtice untado pela soberba jactante, para um egoísmo que é sempre um infeccioso, sepulcral e cúmplice apego ao mais desumano em nós.
De tal aludida libertação, surge mesmo a faculdade de lograrmos ver, sem imunossupressões destorcedoras, os demais, pois se não conseguirmos ver (algo de) Deus quando nos relacionamos com aqueles, estaremos condenados a nunca os encontrarmos e a nunca deslindarmos a nossa mais real verdade. Aquela verdade que nos impedirá de termos quaisquer dúvidas acerca do facto de que se não formos capazes de acolher e amar a quem nos oprime (cf. Mt. 5,44), jamais o seremos com quem não o faz.
Tenhamos isto bem presente: no meio do relativismo dos (pseudo-)humanismos seculares e das suas antropologias débeis, Jesus, vivendo a humanidade em grau supremo, faz uma asserção absoluta acerca do que é o ser humano. É estarmos divinamente vivos, em Deus e nos demais (a quem Aquele também transforma em templos da Sua imensa Presença a santificar as suas dignidades inquebráveis), no amor que permite ver em densidade (cf. Lc. 10,33ss). Até aí, e como expôs George Elliot em “Rosas invisíveis”, «estaremos a gastar, nas encruzilhadas / Do que é vão enleadas, / Duas das maiores dádivas a nós legadas».