Editorial: O Papa Francisco na Mesopotâmia

EPA/ALESSANDRO DI MEO

O Papa Francisco mostrou um grande desejo de viajar ao Iraque e cumpriu-o mal foi possível.

Por Jorge Teixeira da Cunha 

A sua idade, a pandemia, o perigo de viajar para um país de instituições pouco estáveis e de segurança pública precária, constituem razões que não o demoveram de visitar um lugar cheio de evocações remotas para a nossa cultura cristã ocidental. Mas o seu sentido de missão prevaleceu sobre a prudência humana. O resultado deste gesto é imprevisível. Mas podemos antever que terá um efeito benéfico em diversos sentidos.

O primeiro motivo que levou Francisco ao Iraque é o socorro e o encorajamento de uma comunidade cristã em dificuldades extremas. Os dados mostram como o número de cristãos tem diminuído drasticamente, desde que o Islão oficial não consegue controlar frequentes irrupções fundamentalistas. A Mesopotâmia foi dos primeiros lugares que se tornaram cristãos, principalmente desde a Cidade de Edessa, no Norte. Após a chegada do Islão, no séc. VII, manteve-se uma convivência multirreligiosa que, ultimamente, tem sido posta em questão. Por isso, uma das preocupações de Francisco é o incremento do diálogo inter-religioso que possa levar à institucionalização de uma verdadeira liberdade religiosa naquela região de predominância islâmica. A esse propósito, a viagem teve um importante encontro com o Aiatola Al-Sistani, líder do Islão Shiita. Esse gesto vem juntar-se a outros com responsáveis islâmicos. Desse modo, o Papa Francisco tem levado por diante o “espírito de Assis”, movimento que João Paulo II iniciou e que corresponde a um sinal dos tempos que vivemos.

De facto, a fé religiosa tem uma importância fundamental para a manutenção da paz e da segurança no mundo. Mediante a diplomacia e a guerra criou-se na Região do Golfo Pérsico um lugar de ameaça à paz e de sofrimento para os povos locais. Ao incrementar o diálogo entre as religiões, o Papa Francisco e as outras Igrejas cristãs, podem e devem dar um contributo decisivo para a pacificação e para o melhoramento das instituições políticas e não só. O sentimento religioso tem um papel fundamental no melhoramento da humanidade do ser humano. Sem esquecer que para isso é necessário velar pela qualidade do sentimento religioso, pois, de contrário, a crença pode levar à patologia e à violência. Na sua velhice, o Papa Francisco está a desempenhar um papel fundamental neste capítulo. Esta aproximação entre cristianismo e islão é muito importante para a próprio Europa. Sem europeus convictos e esclarecidos nas suas convicções religiosos, a Europa corre o risco de perder a sua identidade e de deixar de ser o que foi em termos culturais e mesmo económicos.

A viagem do Papa Francisco à Mesopotâmia não pode deixar de nos motivar uma pequena viagem aos valores que de lá nos vieram, se olharmos para a história mais antiga. O texto bíblico recebeu importantes contribuições da cultura mesopotâmica que foram recebidos pela tradição vetero-testamentária. Se estamos a ver bem, foi do contacto dos Hebreus com os Medos e os Persas, que em tempos habitaram as regiões que hoje são o Iraque e o Irão, que a Bíblia recebeu o fermento daquilo que hoje chamamos a liberdade religiosa, a ética política, o matrimónio personalista, a dignificação da mulher, os direitos da consciência moral perante a lei e a autoridade. Tiveram origem nesse mundo os livros de Daniel, de Tobias, de Ester, de Jonas, onde esses dados estão patentes a um olhar mais atento. Por isso, de certo modo, Francisco é portador de algo que nos foi trazido do lugar onde agora o devolvemos como testemunho reelaborado. A cultura é sempre um regresso à memória inesgotável da vida, no fundo da qual somos encontrados por Deus. O Islão é também uma forma de escuta do divino. Porém, o Cristianismo tem uma responsabilidade especial, pois leva em si a memória do Verbo que se fez carne. Por isso, não haverá paz no mundo pelo triunfo da força, mas somente pela paciência do diálogo. Quando Francisco faz do diálogo a sua missão, a Igreja e as nações muito gratas lhe ficam.