Aquele grande rio Eufrates ou o regresso da esperança

Quando vieres pela estrada de sião
então afastarás de nós a impiedade

Ruy Belo, Aquele grande rio Eufrates

Por M. Correia Fernandes

Olhando as imagens e ouvindo as notícias e comentário sobre a visita do papa Francisco ao Iraque, veio-me à mente o título do primeiro livro de poemas de Ruy Belo (1933-1978), uma longa elegia meditativa, sobre os sentidos da vida, da fé e da revelação, inspirada pela palavra do Apocalipse, no cap. 16, 12, que escreve: “ O sexto anjo derramou a sua taça sobre o grande rio Eufrates, e secaram-se as suas águas para que fosse preparado o caminho para os reis que vêm do Oriente”.

A linguagem simbólica do Apocalipse constitui uma meditação sobre os dramas da condição humana. Há muitas formas pelas quais se secam as águas dos rios: conflitos, guerras, invasões, destruições, violências assassinas, estátuas que se constroem e se derrubam com novas violências. Esta imagem apocalíptica pode traduzir a ambição do poder e do domínio, e a invasão de que foram alvo as terras desse grande rio Eufrates, que banha a província da Nassíria e a terra de Ur dos Caldeus, de onde veio Abraão, e “donde vem tudo, o dia e a Fé”, na palavra de Fernando Pessoa (Álvaro de Campos), num dos mais belos e inspiradores poemas da língua portuguesa.

E o poema de Ruy Belo constitui também uma meditação sobre todo o sentido da criação, da natureza, da ação messiânica, do sentido da vida e da História, as suas misérias e uma esperança trágica da sua grandeza escatológica: “afastarás de nós a impiedade”.

O Papa Francisco visitou o Iraque. Foi resposta a um apelo dos cristãos e foi um ato de coragem neste esforço de presença da Igreja junto de uma comunidade de cristãos que a Guerra do Golfo (1990-91) e os conflitos subsequentes reduziram de mais de um milhão de fiéis para cerca de trezentos mil, segundo informações que foram divulgadas.

Recordemos que o Iraque é essencialmente um amplo vale, larga bacia hidrográfica dos rios Tigre (a oriente) e Eufrates (a ocidente), uma das regiões mais férteis da Ásia, que recebe as águas vindas da Síria e da Turquia, através da região do Curdistão. Ali floresceram na antiguidade grandes civilizações, como os Sumérios, os Caldeus, e que teve na mítica Babilónia a sua mais mediática referência ao longo dos tempos. Ali estiveram os judeus, conduzidos como escravos pelo imperador Nabucodonosor (604-562 AC) do império Assírio, e depois libertados pelo novo imperador da Pérsia, Ciro, que permitiu o seu regresso à Palestina, tal como quinze séculos antes fizera Abraão.

Importa lembrar que foi nestas terras que, a par da Grécia, da Turquia e do Egipto, primeiro foi anunciado o Evangelho de Jesus, segundo a tradição, pelos apóstolos Tomé e Judas Tadeu, enquanto Paulo percorria os caminhos da Turquia, da Grécia e depois de Roma.

Mas a referência mais viva destas terras é a de Abraão, que de Ur da Caldeia, que busca a terra de Canaã, recebe o chamamento e a mensagem de Deus através do conhecido episódio do sacrifício rejeitado, momento civilizacional de toda a História humana (séc. XVIII AC), e que precede outro momento civilizacional, o da revelação da Lei a Moisés (séc. XIII AC).

Assim, a terra do Iraque, desse grande rio Eufrates, está ligada ao nascimento de toda a fé do mundo ocidental: em primeiro lugar, os Judeus, depois os cristãos e depois os muçulmanos, também eles nascidos da estirpe de Abraão através de Agar.

Lembremos que o Iraque tem uma superfície de mais de quatro vezes o território nacional, comparável à Espanha, ou pouco menor que a França, tendo como capital Bagdad, e como cidades importantes Bassorá (no sul), Mossul e Kirkuk no norte. Confina com seis países: o Irão, a Turquia, a Síria, a Jordânia, a Arábia Saudita, o Kuwait. A sua população ronda os 22,5 milhões de habitantes, nos últimos tempos dizimada pela migração em fuga às invasões dos grupos do chamado “Estado Islâmico”, sendo os cristãos objeto da mais rude perseguição. Por isso, já no tempo e João Paulo II apelavam a uma presença do Papa para robustecer a sua fé.

A ambição das potências poderosas do mundo (lideradas pelos Estados Unidos da América) advém da sua riqueza me petróleo, sendo um dos mais importante produtores, o que conduziu à nova invasão de forças americanas e inglesas em 1999, que acabaram por conduzir à deposição e morte de Saddam  Hussein em 2003. Nos últimos tempos, foram marcantes os ataques terroristas de que foram alvo especialmente a comunidades cristãs, com muitos membros a terem que fugir e refugiar-se noutros países.

É para este universo que se dirigiu a visita de Francisco: um anúncio da convivência pacífica, de vivência inter-religiosa e de construção de uma sociedade de paz e respeito mútuo. Este desejo e proposta do papa encontra-se nas palavras do encontro em Mossul, o espaço da antiga cidade de Nínive, referida nos evangelhos: “Peço a todos vós, queridos irmãos e irmãs, que trabalhem juntos em unidade por um futuro de paz e prosperidade que não discrimine nem deixe ninguém para trás”, palavras que mereceram o aplauso não apenas dos cristãos mas dos membros o Estado iraquiano, que o receberam com mostras de um acolhimento de sentido ecuménico, de que pode ser exemplo o encontro com o chefe muçulmano xiita, Ali Sistani. Mas o apelo estende-se também aos muçulmanos sunitas, predominantes no sul do país. Houve celebração multitudinária (apesar das máscaras), e o papa falou da “trágica redução dos discípulos de Cristo”, perda incalculável para as pessoas e a sociedade local. “Como é cruel que este país, berço de civilizações, tenha sido atingido por uma tormenta tão desumana, com antigos lugares de culto destruídos e milhares de pessoas (muçulmanas, cristãs, yazidis e outras), deslocadas à força e mortas!”

Uma das ideias mais veementes que assinalou foi a denúncia da utilização do factor religioso como motivo de perseguições. Esse mau entendimento do sentido da religião e da sua vivência humanista é desvirtuado não apenas por aqueles que a usam, mas também por uma certa mensagem da comunicação social que fala de “guerras religiosas”. As guerras nunca foram religiosas, foram ações dos Estados, dos grupos, dos interesses, das forças políticas ou económicas que se apropriam do conceito de religioso para falar das guerras.

Sabemos que na História, as descobertas, o domínio dos territórios quando realizados pelas forças militares de povos de religião maioritária foram chamados de guerras religiosas. Isso constitui uma ideia falsa e destrutiva. Todas as guerras foram de interesses, não de religiões.

Eis a palavra de Francisco: “Deus é misericordioso e a ofensa mais blasfema é profanar o seu nome odiando o irmão. Hostilidade, extremismo e violência não nascem dum ânimo religioso: são traições da religião”, declarou, num simbólico encontro inter-religioso que decorreu em Ur, terra do patriarca Abraão, uma referência para judeus, cristãos e muçulmanos.

O presidente iraquiano, Barham Salih, elogiou a “grande mensagem de humanidade e solidariedade” proposta pelo Papa.

Um sinal de esperança no “afastarás de nós a iniquidade”, originando “uma grande paz até ao fim dos tempos”. Não será pedir muito!