“Spiritus Domini” – Partir do Batismo/Confirmação

Foto: Vatican News

Por Secretariado Diocesano da Liturgia

O motu proprio de Francisco, “Spiritus Domini”, do passado dia 10 de janeiro, ao omitir uma simples palavra no §1 do cân. 230 – «Viri»; dantes «Viri laici» («os leigos do sexo masculino») e agora «Laici» («Os leigos») – não se limitou a superar uma exclusão das mulheres, de facto e de direito, dos ministérios instituídos. Na verdade libertou-os – esses e outros ministérios a «instituir» – da subordinação ao Sacerdócio ministerial, devolvendo-os em plenitude ao seu âmbito próprio que é o exercício do Sacerdócio «comum» dos batizados e crismados que na Eucaristia e na vida traduzem, pelo exercício dos carismas e ministérios (estes são carismas «publicamente reconhecidos e instituídos pela Igreja, postos à disposição da comunidade e da sua missão de modo estável» (Francisco, carta ao Prefeito da CDF, 11 de janeiro 2021), a sua real participação no mistério de Cristo, Sacerdote, Profeta e Rei.

Podemos dizer que, no plano dos princípios, essa mudança histórica já tinha sido realizada por São Paulo VI em 1972, com o motu proprio “Ministeria quaedam”. Mas, de facto, uma antiga e «venerável tradição» que considerava a colação desses ministérios «como etapas de um percurso que devia levar às “ordens maiores”», conduziu a aplicar a estes ministérios laicais uma reserva que apenas faz sentido para a receção do Sacerdócio ministerial. Consequentemente, na esmagadora maioria das dioceses do mundo católico, o tema dos ministérios instituídos continuou a girar na órbita exclusiva do sacramento da Ordem em vez de gravitar em torno dos Sacramentos do Batismo/Confirmação, como concretizações de uma Igreja toda ela carismática e ministerial.

É oportuno recordar, neste ponto, o ensinamento de LG 10 sobre a distinção essencial e mútuo ordenamento vital entre sacerdócio ministerial ou hierárquico e sacerdócio comum dos batizados e crismados: ambos participam, de modo real mas diferenciado, no sacerdócio único de Cristo; ambos contribuem inseparavelmente para a comunhão da Igreja e para a sua missão. E recordemos a grande «revolução» teológica que representou a decisão conciliar de, na constituição dogmática sobre a Igreja (Lumen gentium), fazer preceder o capítulo dedicado à hierarquia (o II no esquema em debate e o III no documento aprovado) de um capítulo novo sobre o Povo de Deus. Porque aquilo que é comum a todos os cristãos – a ontologia comum da graça que decorre da Iniciação cristã e se exprime na vocação e missão do povo messiânico, no culto em espírito e verdade que culmina nos sacramentos, na vitalidade carismática e ministerial, na unidade católica e ecuménica… – precede todas e quaisquer distinções entre eles e, portanto, o necessário mas posterior discurso sobre a essencial estrutura hierárquica da Igreja.

O batismo é o sacramento da igualdade radical de todos os cristãos: «Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; todos vós sois um só em Cristo Jesus» (Gal 3, 28: leitura prevista para a celebração do Batismo: CBC n. 192; cf. com o mesmo sentido de unidade e comunhão: 1Cor 12, 12-13 em CBC n. 191; Ef 4, 1-6 em CBC 193…). Mas havia metade do povo cristão privada do acesso pleno ao exercício dos seus direitos e deveres de batizadas. Foi isso que Francisco retificou, ultrapassando inércias e resistências. Daí a carta ao Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé datada do dia seguinte à promulgação do Motu proprio “Spiritus Domini”.

Com finura de exegeta, Francisco explica nesse documento a distinção entre «tradição venerável» e «tradição veneranda». Em sentido estrito, só esta, «deve ser venerada». Uma «tradição venerável» «pode ser reconhecida como válida…; contudo não tem um carácter vinculante». Nos anos do Concílio também Yves Congar apelava à distinção entre Tradição (com maiúscula) e tradições… É o caso da reserva exclusiva do Leitorado e Acolitado a fiéis do sexo masculino: esta «venerável» «tradição» (com minúscula), foi válida durante muito tempo, mas não decorre da «natureza própria dos ministérios de Leitor e de Acólito»: não é Tradição (com maiúscula) «veneranda». E Francisco acrescenta um juízo de oportunidade pastoral: «Oferecer aos leigos de ambos os sexos a possibilidade de aceder ao ministério do Acolitado e do Leitorado, em virtude da sua participação no sacerdócio batismal, incrementará o reconhecimento, inclusive mediante um ato litúrgico (instituição), do contributo precioso que desde há tempo muitíssimos leigos, incluindo mulheres, oferecem à vida e à missão da Igreja».

Afinal, já João XXIII tinha reconhecido como «sinal dos tempos» a entrada da mulher na vida pública, sendo aí reconhecida como pessoa em paridade com os homens (Pacem in Terris, 1963). Isso tinha de valer também na «vida pública» eclesial.