Lembrança de Gomes Leal, no centenário do falecimento

Por M. Correia Fernandes

Ocorreu em 28 de janeiro de 2021 o centenário do falecimento em Lisboa, donde também era natural, do poeta António Duarte Gomes Leal (1848-1921). Como qualquer poeta, não foi apenas poeta, mas escritor de mais amplo universo, desde a narrativa, a crónica jornalística e a crítica literária.

Gomes Leal, como ficou conhecido na história literária de Portugal, foi figura controversa no seu tempo, tão estranha que passou da formação católica ao ambiente boémio da sociedade lisboeta da época, cultivando algum exibicionismo janota, passando depois a homem convertido, até se tornar um mendigo pela cidade, após a morte da mãe a quem estava muito ligado, segundo testemunhos que o apresentam a dormir nos bancos dos jardins da capital. Terá sido por proposta e ação de Teixeira de Pascoaes e outros escritores que se conseguiu do Estado uma pensão, ao que se diz diminuta, que lhe permitiu terminar os seus dias em sossego, na casa já dos 73 anos.

Passou de poeta de agressividade verbal, contundente, iconoclasta e mesmo blasfemo, a homem marcado pelo espírito cristão, escrevendo poemas de sentido humanista e mesmo espiritualista, incluindo uma História de Jesus para as criancinhas lerem (1883), em que avultam versos como estes: “Ó suaves mulheres, que estais cantando / ao pôr do Sol, à porta, às criancinhas, / vinde ouvir uma história, em verso brando / que hei-de ensinar a ler às andorinhas”.

A Gomes Leal dedicou o insigne Vitorino Nemésio a obra “O Destino de Gomes Leal”, com uma antologia de textos do poeta (ed. Imprensa Nacional).

O interesse pela nossa tradição literária inspirou-lhe o livro “A Fome de Camões”, poema em quatro atos (publicado em 1880, ano do tricentenário da morte do poeta), e dez anos depois, no quadro do ultimato inglês, “Troça à Inglaterra”, e escreveu até a letra de um “Hino á Pátria” para uma composição de Alfredo Keil, o autor do atual Hino Nacional (com letra de Henrique Lopes de Mendonça). É desta época a conhecida caricatura de Rafael Bordalo Pinheiro, de chapéu de coco deslocado, bigode e charuto. Em “A fome de Camões”, quase como antecipação do seu próprio destino mais tarde, escreve: Este vulto, portanto, que caminha /Altas horas, ao frio das nortadas, /É Camões que se definha / Nas ruas de Lisboa abandonadas.

Partindo de influências literárias como de Antero de Quental, desde um romantismo tardio até aos gostos realista, simbolista, impressionista e parnasiano, talvez a sua obra mais significativa tenha sido “Claridades do Sul” (1875), em que se encontram influências múltiplas, desde a visão social de Victor Hugo às transmutações imagéticas e sensoriais de Baudelaire, das suas “Correspondances” e das suas imagens sugestivas da luz, sinestesias de som e de cor. Ele próprio afirma que a obra resulta de uma visão de homem meridional moderno, atento a toda a condição humana que pretende traduzir nas palavras em que ressalta um surto de imaginação e de liberdade. Sobre o poeta francês escreve: “Eu não sou o fatal e triste Baudelaire /Mas analiso o sol e decomponho as rosas / As rijas e cruéis dálias gloriosas … Tudo que existe ou foi morre para nascer: /Na campa dão-se as plantas graciosas… A Morte sai da Vida – a Vida que é um sonho!”

Entre os universos poéticos qua vai percorrendo (História, Literatura, figuras inspiradoras, mitos e realidades), emerge a própria figura de Cristo no transe da sua morte num poema com o título “Heli! Heli!”: “Finou-se, enfim, chagado e justiceiro / Ainda, ainda, perdoando ao mundo”.

Seduzem-no as catedrais: “Como vos amo, ó catedrais sozinhas / A recortar o azul das noutes consteladas”! Sente o pecado, “negro nome do vício e perdição”.

Há espaços e tempos, como o inverno, os bichos como os lobos (tema de um poema narrativo em que reflete sobre o drama ou a tragédia da miséria e da dor humana da mulher mãe imersa no drama da vida), também presente em poemas como “Miséria oculta”. Não esquece a cidade, como Cesário Verde, e as suas estranhas personagens.  Num quase final “madrigal fúnebre”, em que afirma “A mim custa-me morrer / Não porque esta vida valha / Mas porque sei que hei-de ter /Teu coração por mortalha”. Encontramos personagens como o Quixote, Mefistófeles e Falstaff, Caim, mas também a Lenda das rosas as quadras de Diógenes, a última serenata do Diabo ou a musa verde ou idílio de aldeia, ou uma “carta às estrelas”. A quarta parte do livro é simbolicamente intitulado “Misticismo”, e nele se encontra o conhecido poema “Na noute que passou / O Cristo no Calvário /Um rouxinol cantou /Sobre a Cruz solitário”, em que o rouxinol é presença simbólica da natureza e do drama. Aliás os elementos da natureza (aves, como a andorinha, lírio, arvoredos, violetas, o mar) enquadram visões como “Hora mística”, os vencedores e vencidos.

Numa espécie de posfácio, em prosa, escreve: “Compete ao escritor trabalhar a sua ideia, lapidá-la. Poli-la, desenvolvê-la, facetá-la… por um processo misterioso semelhante ao que faz a Natureza, transformando da lagarta a borboleta, do carvão o diamante e da ostra doente a pérola”.

Bem nos mostram estas imagens a riqueza da visão poética de Gomes Leal. Não merece ser poeta esquecido, mesmo que Fernando Pessoa o designe como “o pior grande poeta que conhecemos”. No dizer de Jacinto do Prado Coelho (Enc. Verbo) “é, enquanto lírico a réplica portuguesa de Verlaine: indisciplinado, vadio, boémio, um tanto louco, caído na miséria na última fase da vida”, mas possui “versos admiráveis que denunciam as profundezas dramáticas de uma alma sensível dilacerada pelo remorso, com uma forme pungente de amparo e de perdão”. E no dizer de José Carlos Seabra Pereira, nestas “Claridades do Sul” se nota uma “postulação multímoda e até paradoxal do Absoluto, cujo acesso religioso se anunciava na gestação da História de Jesus”. Assim passa de uma “estética da revolução para uma estética do Mistério” (As Literaturas em Língua Portuguesa, 2019), procurando na poesia uma busca do conhecimento, mesmo que com “nebulosidades ocultistas”.

De resto, importa lembrar que Gomes Leal é contemporâneo de nomes como Ramalho Ortigão, Eça de Queiroz, Guerra Junqueiro (com cuja vida, escritos e intervenção poética e vivencial manifesta grande proximidade), ou Camilo Castelo Branco, passando pelo saudosismo de Pascoaes e indo até aos tempos de Pessoa e o modernismo do início do séc. XX.