As ironias do laicismo

Por M. Coreia Fernandes

Na fachada da antiga Faculdade de Farmácia, onde estudaram e ensinaram ilustres personalidades da cidade, cujo edifício está agora orientado para outras funções, mas que ainda sustenta a sua identificação, justamente em frente à igreja nova de Cedofeita, encontra-se, escrito em letras maiúsculas de esquadria, este escrito: “Neste Estado laico a Igreja é quem mais ordena”. Vem assinado lateralmente com uma sigla de difícil leitura mas que parece dizer “Filho Bastardo”.

Tudo tem o seu sentido: o que afirma, o local onde se situa, fazendo frente à arquitetura moderna da igreja paroquial e o relacionamento que estabelece com ela.

O que faz menos sentido e carece de verdade é a afirmação que faz ou supõe fazer. Tem uma componente verdadeira (Estado laico) e uma componente de base falseada.

Confrontemos: é de respeitar o Estado laico, embora este conceito (laico) se afirme não pela construção mas pela negação: um estado laico é por definição não religioso. Afirma-se pela contraposição à componente que pretende negar: a realidade da religião e do universo religioso. Sobre este ponto, há que dizer que o universo religioso, tão antigo como a humanidade, não nega nem se opõe ao Estado laico. Um Estado laico também comporta o universo das religiões, de contrário seria uma negação de si mesmo, enquanto abertura à realidade social e humana.

A laicidade supõe a aceitação de todas as realidades sociais, da cultura e da identidade humana da toda a sociedade.

Por outro lado não é verdade que a Igreja é quem mais ordena. Se assim fosse, ou pudesse ser, a sociedade, incluindo a sociedade laica, encontrar-se-ia mais na paz, no equilíbrio ecológico, no equilíbrio emocional, no respeito pela liberdade de consciência, pela defesa e vivência dos mais nobres valores humanos.

Se o Estado laico atendesse às orientações da Igreja, certamente as leis seriam mais justas e as práticas sociais, políticas, económicas e culturais encontravam outros rumos e outras formas de servir as pessoas, as famílias e as estruturas de acompanhamento social.

Aliás, o exemplo é dado quotidianamente pelo trabalho reconhecido das instituições da Igreja, nos milhares de obras sociais que ajudam o Estado laico, colaborando, nos projetos sociais, muitas vezes sem reconhecimento e sem os auxílios devidos por esse trabalho, acompanham milhões de pessoas neste país e no mundo, onde a solução de grandes problemas como a educação, a saúde, a ação governativa, os projetos de desenvolvimento e de promoção social e cultural das populações passam pela inspiração e pela ação dos movimentos das Igrejas. Basta ler os jornais para se saber isso.

É pois desejável que “nesta sociedade laica” a ação da Igreja dê também o seu contributo à laicidade, em ordem ao bem comum, à promoção dos valores humanos, à difusão e desenvolvimento da cultura.

Convidam-se pois os defensores do Estado laico à leitura, por exemplo, dos últimos textos do papa Francisco, louvados em múltiplos sectores não religiosos da sociedade, como aconteceu com a encíclica Laudato Sì.  Ou com as propostas da última carta “Fratteli Tutti”, em que escreve: “O mundo existe para todos, porque todos nós, seres humanos, nascemos nesta terra com a mesma dignidade. As diferenças de cor, religião, capacidade, local de nascimento, lugar de residência e muitas outras não podem antepor-se nem ser usadas para justificar privilégios de alguns em detrimento dos direitos de todos. Por conseguinte, como comunidade, temos o dever de garantir que cada pessoa viva com dignidade e disponha de adequadas oportunidades para o seu desenvolvimento integral”. (n.º 118)