
Por Alexandre Freire Duarte
Quando oportuno, costumo dizer que a Bíblia, em diversos momentos e por motivos distintos, é o “Livro dos Ecos”. Ora vejamos: «Maria e Aarão falaram contra Moisés por causa da mulher etíope que ele tinha desposado, pois ele desposara uma etíope» (Nm. 12,1). Ainda bem que tais ecos existem, pois sendo o ser humano como é, a repetição é um dos mais eficazes processos pedagógicos.
Na linha disto, seja-me permitido fazer eco a um facto capital que já deveria estar mais enraizado na nossa consciência cristã. Um facto que, cada vez que ocorre algo de análogo ao que estamos a viver com esta pandemia, se tende a esquecer, seja porque a dor nos consome e não nos dá descanso (cf. Job 30,17), seja porque quem não crê em Deus, fazendo-nos «comichão nos ouvidos» (2Tm. 4,3), nos lança dúvidas a esse respeito, pondo-nos num estado que, como disse Matthew Arnold em “Praia de Dover”, «não tem luz, nem amor, nem alegria, / Nem certeza, nem paz».
Deus-Amor não é a causa do que estamos a viver. Ele jamais está do lado das razões do mal e do sofrimento que afligem o nosso “eu”, antes é sempre, e pela Sua amorosa compaixão (cf. Ex. 3,7) que invoca a nossa misericórdia para Consigo (cf. Sal. 18,2), a primeira e principal vítima dos mesmos. A recta cognição da realidade à luz do seu ponto focal – a Cruz pascal do Senhor – não nos deveria deixar dúvidas quanto a isso: Deus-Amor prefere ser feito desamor (cf. 2Cor. 5,21) a nos punir por esse desamor (cf. Jo. 3,17).
É certo, sobretudo no multiestratificado Antigo Testamento, que há passagens bíblicas que parecem apontar em sentido oposto ao que acabei de referir. Todavia, isso deve-se mais aos condicionalismos culturais dos seus co-autores humanos, do que ao carácter verdadeiro de Deus. Um Deus que, por sinal e com tais passagens (em que o Espírito Santo aceitou pedagógica e humildemente tais limitações para poder comunicar algo que fosse entendido por tais co-autores), já manifesta a Sua comovente disponibilidade para viver o que aconteceu maximamente na Cruz.
Mas não só: só sabemos que existe, no texto bíblico, essa correlação entre Deus e alguns eventos cataclísmicos, porque esse mesmo texto inspirado no-lo revela. Querer extrapolar essa conexão para outros eventos similares, é algo que, sobretudo à luz da máxima transparência de Deus na humanidade de Jesus (cf. Jo. 14,9), era bom que não fizéssemos, a não ser que, nas palavras do poema “Eco numa igreja” de Edward Herbert, queiramos que, um dia e nas nossas igrejas, em resposta às palavras de alguém, só se ouça: «eco aqui».
Também deveríamos evitar dizer que esta presente adversidade foi querida, directa ou indirectamente, por Deus para nos ensinar algo. É claro que também através dela Deus nos poderá dizer muito (cf. Lc. 13,1-9), conquanto – lá está – a vejamos a partir da Cruz de morte e ressurreição do Senhor. Contudo, seria muito estranho um cristão achar que Deus-Amor, como Pai, carecia deste flagelo, que está a matar tantos pais e tantas filhas, para educar alguém a ser melhor filha ou melhor pai. Ou, no que seria muito mais triste, que precisou dela para incentivar, na nossa percepção eclesial de cristãos preocupados em gerar mais alargadas comunidades unidas no amor, a nossa contínua conversão (cf. 2Cor. 2,16) e a nossa diligente criatividade pastoral (cf. Jo. 9,4). Não bastarão, para isto, as palavras de Jesus para esse efeito? Se não bastarem, nada bastará.
Por favor: repitamos estas verdades a tempo e a destempo e antes que novos tempos de pesar as impeçam de chegar aos demais. Repitamo-las. A aceitação do verdadeiro rosto de Deus depende disso. A credibilidade da mensagem, que Ele desarmadamente nos confiou enquanto cristãos, disso depende. A edificação do corpo eclesial e sacramental do Senhor, enquanto «novo paraíso plantado na Terra» no dizer de Ireneu de Lyon, também.