
Por Jorge Teixeira da Cunha
No início do tempo litúrgico que nos aproxima da Páscoa, somos convidados a olhar para a realidade da tentação que Jesus experimentou e que todos os seres humanos experimentam. Pela sua complexidade, deixamos de compreender o que seja a tentação e a importância que tem como forma de explicação da existência. Dizemos que a tentação é a possibilidade de seguir pela via errada, quando é dado ao nosso arbítrio seguir diversas vias. Mas a tentação é mais do que isso. Ela situa-se nas profundezas do nosso espírito.
Na origem do viver em liberdade está o nosso poder de agir. É aí que se situa a tentação. Todo o poder de viver e de agir dado ao ser humano coincide com a identidade que lhe dá a vida, ou Deus. Por isso, ele não pode fantasiar o seu poder, como se o poder fosse um objecto que se pode acrescentar, manipular, desencadear sobre os outros, uma vez acumulado. Fantasiar o poder significa desenvolver seguranças como se o poder de viver fosse auto-originado pelo ser humano. Essas seguranças são ilusórias e ficcionadas, pois ninguém pode dispor da sua vida para lá da doação originária dela. Todo o poder de viver vem do recuo até ao lugar de origem de todas as vidas, o lugar do encontro com o divino. Creio que é este o sentido da descida de Jesus ao deserto e do jejum que aí experimentou. Esse é um lugar de secura onde a vida se encontra com a sua origem e escapa da todas as fantasias doentias por onde se esfuma a liberdade, vista como autêntico poder de viver. Estas fantasias doentias abundam e corroem a vida.
Vista por este prisma, a luta contra a tentação é fundamental na vida dos seres humanos. É mesmo este o prisma pelo qual a luta pela liberdade é fundamental. E a nossa cultura de hoje bem precisa dessa luta nos dias que correm, na Igreja e fora dela. Basta olharmos a nossa volta e dar alguns exemplos, para ver como corremos infantilmente à procura de falsas seguranças. As notícias dão conta do modo como as pessoas correm à procura da vacina contra a pandemia, na qual depositam uma segurança que mostra a sua indigência existencial. Mesmo clérigos e bispos (pelo menos em Espanha) correm, com escândalo dos féis, a meter-se na fila para serem os primeiros. Sabemos como, segundo a tradição cavalheiresca, os capitães devem, por discrição e grandeza de alma, serem os últimos a fugir do lugar do perigo. Outro exemplo: foi noticiado como alguns cidadãos portugueses usaram a delação à polícia política de antigamente como forma de vingança mesquinha. Consta que alguns reverendos também usaram isso contra paroquianos seus. Este tipo de sentimento vil, delírio infantil de omnipotência, continua presente no nosso quotidiano e é amplamente divulgado pela comunicação social.
São dois exemplos de como o poder de agir fantasiado leva a uma falsa cultura. Uma verdadeira cultura é aquela que se baseia no poder de viver enraizado na fonte divina da vida. Os socorros humanos são prolongamentos deste desinteresse e não a sua substituição. É isto que nos faz falta neste tempo duro de pandemia que estamos a viver. Esse é o contributo fundamental que pode dar a proclamação do evangelho, nas actuais circunstâncias. Tínhamos assimilado a ideia de que a técnica torna a vida invulnerável. Isso é uma ilusão. Fiar-se nisso é uma tentação dos nossos dias. Não se recupera a saúde se não se desce até ao fundo da experiência humana, aí onde se situa o manancial que a todos sustenta. Os remédios humanos apenas têm poder como forma de ampliar essa força que não inventam nem substituem.
As práticas quaresmais não podem ser formas de gratificação do nosso ego. Elas são formas de descida ao fundo da realidade aí onde Deus toca os corações. Neste sentido, a experiência religiosa é a necessidade humano primordial. Oxalá a quaresma nos possa dar essa experiência.