
Por M. Correia Fernandes
Acordaste Informado e ignorante te deitas …
Sérgio Godinho
Sérgio Godinho, homem poeticamente atento ao desenrolar da vida e das suas incidências mais estranhas, e por isso associando a poesia à sociologia (especialidade em que se notabilizou desde os anos 70 do século passado), nuns casos de forma subtil, noutros casos de forma dramática e satírica, abordou recentemente com oportunidade o que foi designado por “novo normal”. (Recomenda-se a análise dos seus poemas por Arnaldo Saraiva, 1983)
Entre os elementos desse “novo normal” situa-se em lugar de destaque (porque é a raiz e a expressão de tudo o mais, a questão da linguagem. Não sei se nos temos dado conta de que nos dias que correm, sem darmos por isso, nos movemos no quadro de uma linguagem em transformação, ornamentada com um conjunto de expressões novas e uma caterva de expressões nascidas da língua inglesa (ou americana, parece que a sua preponderância adstringente vem mais da variante americana que da inglesa), que se meteu nos interstícios da “Madre língua portuguesa, / Sombra dos coros divinos; — Milagre da natureza: / De rouca e surda rudeza/Erguida em sons cristalinos”, como escreveu António Correia de Oliveira em 1920. E já agora sigamos-lhe o conselho: “Ó povo! Defende-a, pura / De ódio, inveja e negra ideia; / Veste-a na graça e candura / Do teu linho, — sem mistura / De falsa púrpura alheia.
Façamos então um percurso higiénico por essa floresta de enganos ou de “falsa púrpura alheia”. Temos evidentemente o on-line, que agora até serve para as missas, as conferências, as Jornadas de Teologia, a Jornada Mundial da Juventude, os encontros de casais, as mensagens da Universidade Católica aos párocos e a leitura de todos os jornais e revistas. O mundo on-line é a mais emblemática expressão do “admirável mundo novo”, para usarmos a expressão da Huxley, nas suas drásticas previsões da manipulação da vontade das pessoas, dos membros da sociedade por outros membros e interesses da mesma sociedade.
Temos depois a suprema novidade deste mundo novo: o take away. De repente tornou-se no sintagma mais visto nas nossas ruas, nas montras, na publicidade, nas normas governamentais e na nova ficção do higiénico. Não há criatura que não promova o seu take-away, desde os donos dos restaurantes mais populares aos mais sofisticados, produtos de chefs com estrelas no guia Michelin. Hoje recorrer ao take-away é um dogma mais potente que qualquer dogma cristão (cuja falta de observância não penaliza ninguém), muçulmano ou pagão. A sua não observância é penalizada com uma espécie de sanção excomungatória de pesada força pecuniária.
Passemos adiante todas as palavras terminadas em ing, como o bullying (para significar a violência juvenil ou formas subtis de intimidação nas escola ou outros agrupamentos de pessoas), o streaming (para significar a ampla difusão de dados por forma digital), o burning out (para traduzir exibicionalmente algo tão simples ou complexo como o esgotamento nervoso ou laboral por sobrecarga de trabalho), o boom do 5G (para significar a procura do novo sistema de tecnologia para uso dos aparelhos de comunicação e os seus luicros previsíveis), exemplos entre tantos outros que surgem como uma espécie de cartão de visita para quem quer exibir modernidade falseada ou conhecimento apelativo.
Novo normal, novas construções
Mas o “novo normal” é já um normal antiquado. Uma das fórmulas mais comuns na linguagem de hoje é o famigerado ok. Aparece em tudo quando é conversa. Em qualquer concurso televisivo ouvem-se dezenas de vezes, pelos concorrentes ou pelos condutores dos programas, a expressão ok. Verifica-se tanto na linguagem portuguesa como na linguagem dos filmes americanos. Não há diálogo sem ok, o que, significando zero mortos, nos acaba por agredir (esperemos que não matar, a não ser o bom senso) com tanta repetição. É preferível recorrer ao brasileiríssimo “Tá”, que até se diz mais depressa. Já tínhamos o contacto do low coast, coisa boa sobretudo quando se refere a coisas caras. Claro que temos o benéfico facebook, repositório de tudo: caras, mensagens, saudações, louvores, parabéns, até orações piedosas, que se irmanam com todo o tipo de imagens chocantes, de anedotas pícaras, de insultos e de julgamentos sumários.
Vamos às palavras portuguesas. A mais repetida em discursos, em conversas e em conselhos é pandemia. Antes era termo não usual, falava-se antes de epidemia, mas hoje é termo de qualquer conversa à porta da pastelaria enquanto se aguarda na fila a desejada presença no interior. Pelo menos tivemos a sorte de não ter surgido como “pandémia”, como tem acontecido com homólogas suas que surgem em certa linguagem comum, como “alcoolémia” (em vez de alcoolemia), “leucémia” (em vez de leucemia) ou “glicémia” em vez de glicemia. Entre as locuções que mais se ouvem, a ministros, deputados, comentadores desportivos e não desportivos é a expressão “Aquilo que é”. Aquilo que é o nosso sistema de jogo, aquilo que é a devida distribuição das vacinas, aquilo que é o equilíbrio social. Compreende-se que em muitos casos tornar-se um processo de retardar a procura da palavra ou da expressão certa, mas na maior dos casos traduz um mau hábito de linguagem, quando não uma tentativa de superação do fraco conhecimento sobre o assunto.
Há também uma certa esquizofrenia pelo uso da palavra esdrúxula, como acontece nos séniores, ou nos júniores (em vez de seniores e juniores), de uso frequente na linguagem futebolística, que se torna o modelo de todas as linguagens.
Outros conceitos nos assustam: um é o do distanciamento social. Onde devia existir aproximação e diálogo, agora temos o distanciamento como norma, quando não como dogma. Palavra mais difícil, agora presente em todos os bons conselhos, sejam eles de médicos ou curandeiros, é a resiliência. Antes era conceito reservado à expressão de uma realidade física, a capacidade de um corpo que sofre uma deformação voltar à forma original. A propósito de tudo nos vem a resiliência como a capacidade de superar a adversidade. Boa metáfora é esta. Saudemo-la como enriquecimento do nosso vocabulário.
Outra realidade destes novos tempos é o teletrabalho. Ao menos agora se encontrou um novo conceito criado pela tradição cultural da língua portuguesa. Ligado a ele vêm as teleconferências, os telediálogos, as telenotícias, os telejúris de exames e até as telemissas.
Linguagem, que aproxime
Deixem-me voltar ao uso das palavras de raiz violenta, quando não ofensiva. O uso de tal linguagem induz no tecido social o sentido latente,da violência ou da agressividade. Todos os dias ouvimos “a esmagadora maioria”, a argumentação “que arrasa”, “o desemprego que dispara”…
Há dias o Papa Francisco pôs também o dedo nessa ferida social, ao escrever sobre o uso da linguagem ofensiva: “o pululamento de formas insólitas de agressividade, com insultos, impropérios, difamação, afrontas verbais até destroçar a figura do outro”; e de “formas de controle que são tão subtis quanto invasivas, criando mecanismos de manipulação das consciências”, como a divulgação de informações e notícias falsas, fomentando preconceitos e ódios», “fanatismos que induzem a destruir os outros”. (“Fratelli Tutti”, n. 42-44).
Curiosamente fala também de pandemia, de sabedoria e de sinais de esperança. É a linguagem que nos relaciona e que nos afasta. Façamos dela fonte de saber, de cultura e de diálogo.