O debate político

Por Ernesto Campos

“Uma coisa é o debate político e outra a realidade”

António Costa, 1.º Ministro

 

O título da última destas crónicas foi trocado. Em vez de Precaução saiu Princípio da Preocupação. É, de facto, motivo de preocupação a divergência que parece existir no seio do poder sobre a dicotomia público-privado. Era suposto que tal disputa ideológica estivesse já sepultada sob os escombros de governos totalitários e políticas estatizantes. Todavia, o exemplo dos profissionais de saúde estrangeiros que vêm ajudar-nos revela-se algo esquisito, sem prejuízo da solidariedade que traduz. Tal colaboração tem sido anunciada, primeiro na origem, e só depois se fala disso aqui oficialmente; a equipa estrangeira, quando chega, não vai para os hospitais que mais se queixam da falta de recursos. Por um lado, há um agradecimento oficial do Estado, como lhe compete, por outro, a pouco entusiasta e discreta receção mostra uma relutância de indisfarçável marca estatizante.

A tutela da saúde, com milhares de consultas e cirurgias atrasadas, prefere apostar na capacidade estatal instalada, dispensando disponibilidades que lhe são oferecidas ao arrepio do senso comum. É o debate dissonante a  sobrepor-se a uma vontade política coesa e realista na sociedade portuguesa.

No princípio da pandemia reconheceu-se a falha da solidariedade internacional, da banca, do capital e, até, a falha de interajuda da comunidade nacional. Só não falhou o Estado, dizia-se. Não se pode, hoje, dizer o mesmo quando se vê que prevalecem, ainda, no debate político resíduos de ideologia totalitária no interior do poder.

Na verdade, merecemos que a esta pretensa supremacia do Estado se sobreponha uma visão realista do país que somos. A democracia em que vivemos é resultante de um passado em que é constante uma relação profícua e saudável do Estado com a sociedade civil. Seja exemplo as Misericórdias, que vêm dos fins do seculo XV e foram modelo imitado em todo o mundo, e outras instituições particulares de solidariedade social. Isso exclui qualquer disputa entre o público e o privado porque, antes de mais. sobra um espaço de interesses individuais e de grupo, materiais e políticos que exigem uma doutrina coerente em que a autoridade e o poder não se dissolvam em contradições e desorientação

A estratégia de poder executivo do Estado, de acordo com a nossa tradição histórica, não pode alhear-se do pensamento cristão, que consagra, sem margem para dúvidas, o primado da sociedade civil. Sem deixar de considerar a sua heterogeneidade e o risco de injustiças e desigualdades, define-se com clareza no Compêndio da Doutrina Social da Igreja: “As atividades da sociedade civil – sobretudo voluntariado e cooperação no âmbito do privado-social,  – sinteticamente definido como “setor terciário” para o distinguir dos âmbitos do Estado e do mercado – constituem as modalidades mais adequadas para desenvolver a dimensão social da pessoa, que em tais atividades pode encontrar espaço para se exprimir plenamente. A progressiva expansão das iniciativas sociais fora da esfera estatal cria novos espaços para a presença ativa e para a ação direta dos cidadãos.”

É, neste contexto, que o Presidente da República pede planos para a abertura da escola, para o futuro desconfinamento, etc. Aguarda-se.