
Por Alexandre Freire Duarte
Recordo-me de um formador meu que, para moldar o nosso carácter, como que nos levava de barco até às três milhas náuticas da costa e, depois, atirava-nos ao mar para voltarmos a nado. O sairmos do saco, em que cada um de nós estava preso, não era, em todo esse processo, o desafio mais difícil. Acreditar que aquilo nos fazia melhores cristãos, era-o.
Recordo isto, para referir que o “santo” não é alguém que atinge os píncaros do “agir bem” após aparatosas gincanas, mas quem, em Igreja, “vive o Bem” que o leva ao amor mais veraz. Pensar o contrário, é o que leva a que, muitas vezes e como temos podido verificar em toda esta pandemia, estejamos ainda apenas a caminho de Emaús: a crer que só Jesus é que não sabe o que Se passa, quando Ele é Quem o sabe melhor (cf. Lc. 24,18). Eis, creio eu, a razão de, apesar de tantos termos falado do que se relaciona com este vírus, poucos o tenhamos feito a partir de uma cognição pascal da história (cf. 1Cor. 2,2).
Tal cognição é a única que está correcta, donde, a humildade de Cristo e o Seu amor pelos que se comportam, face a Si, como inimigos (cf. Mt. 5,44; 11,29), são os supremos e mais seguros critérios de leitura da realidade. Aqueles que, evocando um vivo eco das “bem-aventuranças”, nos levam a reconhecer que Cristo, como “super-espalhador” da graça, viveu como morreu. A saber: sendo livre e libertando, não a sociedade num ímpeto de revolução, mas, por regeneração, o nosso coração, aonde Deus, segundo Louise Sayers, «vem, em cada uma das nossas noites, / Mesmo as mais negras, / Dançar connosco» (“Caos”).
A única liberdade vital é a da ressurreição em Deus. A única escravidão mortal é a de um desamor que, por mais “máscaras protetoras” que use para nos iludir num total ofuscar do coração, advém do avivarmos o egocentrismo no cárcere resultante do «medo da morte» (cf. Hb. 2,15). «Deus mata», podemos ler em Dt. 32,39. Ainda bem, pois nunca seriamos capazes de, sozinhos, fazer um só gesto para matarmos o nosso férreo apego a tal desamor. Um apego tão mais férreo quanto mais crermos que somos mais fortes do que ele, no que tem levado ao decompor de uma Civilização que, já tendo sido cristã, não se mede por bens, mas pelo bem derivado do amor crístico e cruciforme.
Assim, quem desejar viver em Jesus, não pode colocar-se numa “cerca sanitária” que proteja o seu amor-próprio, o qual, pelo que vejo (também em mim), parece ser mais querido do que a própria Vida. Tal forma de vida envolve, sim, ir com Ele até onde aqueles que conhecemos, e fazemos por conhecer, poderão estar a sobreviver imersos em lágrimas que originam “espigas”, de modo a ajudá-los a viverem numa situação de liberdade. Mais: e ajudá-los, especialmente, a viverem numa situação de caridade. Uma caridade que os leve, connosco, àquela fraternidade espiritual que não ignora a Paternidade de Deus (cf. Hb. 12,9), pois, caso contrário, faria de nós “órfãos” ou, pelo menos, “filhos ilegítimos”.
Ocorre que isto, para um cristão e particularmente nestes tempos difíceis, só é logrável se – em vez de andarmos aflitos com que não nos faltem dentes (cf. Ct. 4,2) – nos preocuparmos, sintomaticamente, com o estarem a faltar pessoas ao corpo eclesial do Senhor (cf. Rm. 12,5). Esse corpo que, como sabemos, vive do, e no, Seu corpo eucarístico (cf. Lc. 22,19). Isto será o que, desde já, nos permitirá viver eternamente (ou, o que é o mesmo, divinamente) numa, no dizer de Gabriel Marcel, perfeita “fidelidade criativa”. E o motivo disto é simples: o amor, que só ele eterniza e diviniza num “caso clínico” que devia merecer mais atenção, implica, essencialmente e como diz William Lawrence em “Anjos do deserto”, «um mudar contínuo da paisagem interior, / De quem ama e de quem é amado», ao mesmo tempo que os capacita a ter as suas vidas transformadas para melhor.