Quaresma: das cinzas à vida em Aliança

Foto: João Lopes Cardoso

Nos primeiros séculos da Igreja, o caminho penitencial dos pecadores era expresso por um vestido grosseiro e cinza na cabeça. Era assim que manifestavam, perante a comunidade, a vontade de conversão. Pelo século XII, começou a adotar-se o gesto da cinza, no início da Quaresma, para todos os cristãos. E é assim que na Quarta-feira de Cinzas todos os fiéis – nem o Papa se exclui! – são convidados a receber sobre a cabeça este sinal que nos desmascara: todos pecadores, todos penitentes!

Não gostamos de cinzas. Lembram-nos catástrofes, falam-nos do fim, da morte. As cinzas não se coadunam com a mentalidade de uma sociedade que busca com afã todos os meios de prazer e bem-estar. Por isto mesmo são um gesto eloquente, de grande riqueza simbólica, de um profetismo cheio de atualidade. Trata-se de um gesto antigo, não de um gesto antiquado.

As cinzas lembram, em primeiro lugar, a nossa condição débil e caduca. “Lembra-te que és pó e ao pó voltarás!”. Em linguagem metafórica e ao mesmo tempo realista, a Bíblia recorda-nos que o pó da terra é a origem e o destino do homem. A esta advertência anda associada uma proposta desafiante: “Convertei-vos e acreditai no Evangelho!” A mudança que a conversão exige pode ser dolorosa. Mas não há outro caminho para quem anseia por boas notícias, pela feliz notícia que é o Evangelho de Jesus Cristo.

Para além de recordar a nossa caducidade, a cinza é sinal de começo. Como o barro de Adão, mediante o sopro de Deus, se tornou ser vivo, o nosso barro de hoje, pela força do Espírito que ressuscitou a Cristo Jesus, está destinado à Vida Nova da Páscoa. A Quaresma principia com o gesto da cinza e culmina com a luz, a água e o banquete da Aliança na Noite Pascal.

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Começa esta Quaresma em «quarentena» sanitária, sem a participação presencial nas celebrações públicas da Igreja. Valorize-se então, ainda mais, a oração e celebração em família, Igreja doméstica. A oração pessoal e familiar não é um «extra» para compensar a privação do culto público e comunitário, em tempos de exceção. Deve ser o normal de qualquer batizado e de qualquer família cristã, com os seus tempos, ritmos, rotinas e festas. Não substitui nem supre a participação  nos tempos, ritmos e festas da comunidade cristã alargada. Nem estas a dispensam.

Convém escolher na casa um espaço adequado para aí rezar juntos com dignidade e recolhimento. Pode ser em redor da mesa da refeição. Onde for possível, prepare-se um pequeno «recanto da oração» (cf. Catecismo da Igreja Católica, 2691) ou, pelo menos, um canto da casa onde neste tempo de Quaresma, se coloca a Bíblia aberta, uma cruz e, se possível, uma vela num castiçal ou uma candeia. Sugere-se também a colocação de uma arca – que pode ser feita pelos mais novos, de matérias recicladas – onde se pode ir depositando o fruto das privações voluntárias a transformar em oferta de amor ao próximo. Ver a este propósito as propostas de oração que integram a caminhada diocesana.

O dia a privilegiar para a oração comum familiar é o Domingo, encontro semanal que o Ressuscitado marca com os seus para se deixar tocar nas suas chagas e curar as deles. Mas em todos os dias pode e deve haver algum momento de oração.  Na Quaresma recomendam-se, por tradição, as quartas e sextas-feiras. Sugere-se a oração do terço ou de algum dos mistérios do Rosário; a oração da Via Sacra ou, pelo menos, de algumas estações; alguma oração devota a São José, particularmente neste ano que lhe é dedicado, etc.

As sextas-feiras da Quaresma, memória semanal da Paixão de Cristo, devem ser vividas com espírito de penitência. O jejum que mais agrada a Deus é o dos vícios, dependências e de tudo o que diminui as pessoas na sua dignidade integral. Cada família dialogará as renúncias e privações voluntárias a fazer – por cada membro, em particular, e em comum, por todos –, tendo em conta a saúde, idade e ocupação de cada qual. Deverá também dialogar-se sobre a finalidade caritativa a dar ao fruto dessas renúncias: contributo penitencial para os fins divulgados pelo Bispo diocesano, apoio a alguma causa ou instituição de solidariedade (por ex., Cáritas, Conferência Vicentina…), ajuda concreta em situações mais próximas, etc.