
Por M. Correia Fernandes
Há gestos simbólicos. A Bíblia está cheia deles: a pomba de Noé e a pomba do Batismo de Jesus, o arco-íris pós-diluviano, o cordeiro pascal, o fogo do Sinai, a estrela dos Magos que lhes revela o lugar do nascimento, o pão e o vinho da última ceia, a água do lago, a água da samaritana e a que brota do lado aberto de Jesus Cristo. E a grande proclamação dos salmos e do Evangelho: “O Senhor é meu Pastor, eu sou o Bom Pastor”. Os símbolos são a presença encoberta de novas realidades salvíficas.
No domingo que precedeu este dia 17 de fevereiro, Quarta Feira de Cinzas, muitas igrejas apresentaram novas flores para a celebração desse domingo, reservada mas aberta às transmissões, apesar da ausência da assembleia celebrante. As flores são também um símbolo: o da beleza e o da caducidade.
Outra realidade simbólica, outra proposta é a Mensagem para a Quaresma do papa Francisco:
“Quaresma: tempo para renovar fé, esperança e caridade”, bem como tantas outras mensagens de Bispos e teólogos da Igreja universal.
Por isso, é essencial que procuremos captar a dinâmica que o Papa Francisco quis transmitir através da sua mensagem proclamada em tempo de dores, de confinamentos, de dramas e de esperanças.
Na nossa memória, esta estranha Quarta Feira de Cinzas é a primeira em que não se realiza publicamente esse gesto tradicional, também de simbologia bíblica, a bênção e imposição das cinzas. Em tempos de guerras ou de outras epidemias quantas comunidades ao longo dos tempos a não puderam igualmente realizar! O no entanto o seu espírito permaneceu e continua como proposta de atitude e gestos de conversão pessoal e social.
Da mensagem do Papa (que publicamos noutro lugar) há um conjunto de ensinamentos que importa valorizar e fazer cair fundamente no coração das pessoas, da Igreja e da sociedade hodierna. Salientamos alguns:
1.Acolher e viver a Verdade manifestada em Cristo significa, antes de mais, deixar-nos alcançar pela Palavra de Deus. Eis um ponto em que facilmente perdemos a referência: entre notícias insidiantes, dramas reais, números e percentagens, conselhos e propostas, dúvidas e decisões, é fácil esquecermos, mas importa lembrar o essencial: a Palavra salvadora.
2.A Quaresma é um tempo para acreditar, mesmo no contexto de preocupação em que vivemos atualmente, onde tudo parece frágil e incerto. Acreditar é a abertura ao caminho das soluções concretas. Falar de esperança não é uma provocação, mas a verdadeira alternativa.
3.A caridade, vivida seguindo as pegadas de Cristo na atenção e compaixão por cada pessoa, é a mais alta expressão da nossa fé e da nossa esperança. Assim os cuidados de saúde, como presença concreta das pessoas que acolhem e cuidam (o cuidar é a fórmula mais viva do acolher) é a expressão da nossa humanidade, da fé e esperança de cada homem ou mulher de boa vontade.
4.A caridade alegra-se ao ver o outro crescer; e de igual modo sofre quando o encontra na angústia ou no abatimento. E a emergência omnipresente da pandemia não nos deve fazer esquecer tantas outras enfermidades, do corpo e do espírito, que assolam as pessoas e a sociedade.
5.A partir do “amor social”, é possível avançar para uma civilização do amor a que todos nos podemos sentir chamados. Esta expressão “amor social” é uma novidade na palavra do Papa Francisco, que a propôs nas suas últimas mensagens: o amor não é apenas um sentimento pessoal, mas uma atitude humana a social de relacionamento com todos. É uma realidade de dimensão civilizacional. Ou como se afirma na “Fratelli Tutti”, um caminho de cultura, a “cultura do encontro” (n.º 215-217). Sobre ela deverão pensar e organizar as suas ideias os políticos, os empresários e os trabalhadores e nela realizar os seus projetos de construção social.
6.A caridade possui um dinamismo universal, porque não é um sentimento estéril. Esta é uma dimensão que alarga o conceito anterior. Será deste dinamismo que devem brotar as soluções, as mais amplas e as mais concretas, para os problemas que a sociedade atravessa.
Nestes dias, como aliás ao longo do ano, fomos confrontados com a memória de muitos, jovens e adultos, homens e mulheres que enfrentaram a aparência da destruição pela força da fé cristã. Deixaram o seu testemunho, pereceram os seus carrascos, e a mensagem alargou-se e difundiu-se. Essa esperança devemos manter hoje.