Por M. Correia Fernandes
No dia 7 de janeiro morria em Lisboa Sebastião Artur Cardoso da Gama (1924-1952), que sempre assinou os seus escritos como Sebastião da Gama. Era natural de Vila Nogueira de Azeitão, em plena península de Setúbal, e a sua vida decorreu entre o seu espaço natal e a cidade de Lisboa, onde frequentou o Curso então chamado de Filologia Românica, tornando-se professor de Português, percorrendo o tempo de estágio e o chamado “exame de estado”. Não chegou aos 28 anos de idade, mas a sua vida de professor foi marcante para ele e para os discípulos. Foi companheiro do insigne linguista Lindley Cintra (que prefaciou a sua primeira obra de poesia, “Serra Mãe”) e aluno do mestre de Literatura Hernâni Cidade.
Uma vida curta não pode dar origem a uma obra longa, mas pode conduzir a uma obra inspirada e profunda nas leituras e nos ideais que transmite. Assim aconteceu com a escrita poética de Sebastião da Gama e com a ação de professor, missão que ele especialmente apreciava, expressa na frase sua registada por Hernâni Cidade: “Bendito seja Deus que me fez professor” (Encicl. Verbo).
Iniciado com “Serra Mãe”, que acentua a sua raiz nascida na natureza, passou depois por “Campo Aberto” (1951) e nas obras póstumas “Pelo sonho é que vamos” (1953) e “Diário”, reunindo as suas reflexões sobre a ação pedagógica e os complexos sentidos da vida. A editora Ática editou seis das suas obras na conhecida “Coleção Poesia”.
Um dos seus desejos era tornar a poesia uma expressão de sinceridade, em confronto com a tese pessoana de que o poeta finge que é dor “a dor que deveras sente”, como assinala outro poeta falecido, Ruy belo, no Prefácio à segunda edição de “Pelo sonho é que vamos” (1970), em que escreve: “um cantor da vida, das coisas belas da vida, dos sentimentos nobres, da pureza. Ele é o oposto de um poeta maldito”.
Confrontado com a enfermidade, refugiu-se no convento da Arrábida, na busca de bons ares. Esta associação aos lugares de Frei Agostinho da Cruz, o poeta místico do séc. XVI, contém em si mesma um sugestão de sentido densamente humano e vivência espiritualista da vida. O contacto com a Natureza levou-o a promover a defesa da serra da Arrábida, certamente inspiração para a obra “Serra Mãe”, e para as suas “Loas a Nossa Senhora da Arrábida” (1946).
A obra de Sebastião da Gama vale tanto pela inspiração, como pela leitura poética e profundamente humana do mundo e da vida, que Hernâni Cidade resume assim: “Toda a sua obra poética ou pedagógica é de poeta pela graça de Deus, ser em amoroso, fraternal convívio com as almas e com as coisas, fazendo da vida um permanente anseio de comunicação simpática, de alegre dadiva”.
A obra de Sebastião da Gama é uma das indicadas para o estudo da língua portuguesa nos programas atuais, e uma das suas sugestões mais relevantes pode encontrar-se no conhecido poema “Pelo sonho é que vamos”, que figura em todos os manuais:
Pelo sonho é que vamos,/ comovidos e mudos. / Chegamos? Não chegamos? /
Haja ou não haja frutos, / pelo sonho é que vamos. / Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo que talvez não teremos. Basta que a alma demos, /
com a mesma alegria, / ao que desconhecemos / e ao que é do dia a dia.
Chegamos? Não chegamos? / – Partimos. Vamos. Somos.
A espiritualidade da criação poética, entre muitos outros sítios, pode estar inscrita nestes versos:
Agora, / que eu já não sei andar nas trevas, /não me roubes a Tua Mão, Senhor,
por piedade! / Voltar às trevas não sei, / e sem a Tua Mão não poderei / dar um só passo em tanta Claridade. /Não me deixes ficar / com o Caminho todo iluminado /e eu parado e tão cansado / como se fosse a andar …
Recordamos a leitura englobante da sua obra, por José Carlos Seabra Pereira: “…um lirismo de empática simplicidade na exorcização cristã da solidão e da morte, confortando em esperança mundividente e em confiança na origem divina da expressão poética uma visão cordial e grata da beleza do mundo natural e da riqueza dos sentimentos humanos… de generosas relações interpessoais, de factos primordiais (mãe, infância), do amor conjugal e da fé vivida (dimensão religiosa que por vezes torna o lirismo contemplação e louvor orante”. (“As Literaturas em língua portuguesa, das origens aos nossos dias”), Gradiva, 2019, p. 445).
Caberia também uma aproximação poética e temática com a escrita de outro poeta falecido na mesma idade, Daniel Faria (1971-1999) na sua atitude de captar “a voz do vento passando entre poeira”, que “desvela no instante… a eternidade da Transcendência divina”, no dizer do mesmo autor.
Deixo uma memória (prosaica), escrita pela mão do próprio Sebastião da Gama, numa dedicatória a Sophia, datada da Arrábida, 1949, reconhecendo que ela se define como “poeta” (e não “poetisa”).
Atualmente, Sebastião da Gama é titular de uma escola secundária e agrupamento de escolas na cidade de Setúbal e de uma Escola Básica em Estremoz, onde também foi professor. Na terra Natal, Vila Nogueira de Azeitão, foi constituído o Museu Sebastião da Gama, destinado a preservar a sua memória e a sua obra.