
No princípio… era a musicalidade da salmódica judaica. Quando a Igreja se separou da Sinagoga, não rejeitou tudo o que esta podia oferecer de belo e espiritual. Acrescentou-lhe o típico dos modos gregos e criou o canto gregoriano, hoje novamente apreciado.
Este género distingue-se por ser monódico e coletivo: todas as vozes cantam uma melodia única e nunca se conhece o autor que tornou o texto mais performativo ao juntar-lhe a expressividade da música que «comove» corpo e alma.
Porém, a história da humanidade não para muito tempo no mesmo degrau. A dado momento, começou a valorizar mais a criatividade individual do que o tónus social. E o Renascimento apostou na diferença: o monódico foi substituído por duas ou mais vozes que se conjugam, até à polifonia, e o autor passou a assinar as composições. Isso designou-se por contraponto. Embora o conceito diga mais respeito à técnica, na prática, era ir «contra» o passado. E –claro- surgiram, também, obras de rara beleza.
Refiro isto como paradigma deste tempo. Hoje, nem se aceita muito o monocórdico, nem se privilegia o passado e o social. Pelo contrário, é dado da cultura que se faça contraponto ao contraponto, numa progressão infinita. E qualquer autor exige ter lá o seu nome bem escarrapachado, por menos que a obra o mereça.
Isto está mal? Em princípio, não. É o que designamos por pluralismo. O problema é se se eleva à categoria de único princípio organizador. Então, já não seria pluralismo, mas fragmentação. Ou pulverização. Da sociedade, das tradições, dos costumes, da ética, das organizações, da vida. E pulverização remete para… o pó, para o nada.
A Igreja, que “está no mundo”, ainda que “sem ser do mundo” incorre nesse perigo. Aliás, sendo a maior organização, é a que sofre maximamente esse risco. E já se nota bem: como na política, onde uma extrema-esquerda exige a dissolução da extrema-direita e esta acusa aquela de ser origem de todos os males, também no “povo do Senhor” assistimos a um altear de vozes semelhantes. E o que é pior: dá-se uma espécie de «apostasia silenciosa» em que cada um faz o que quer, sem preocupação de unidade, e ainda afirma que a sua é que é a verdadeira Igreja.
Não tenho medo das perseguições que venham de fora, aliás em crescendo. Mas temo a nossa desagregação interna. “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça”.
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